terça-feira, 17 de setembro de 2013

Dimensão Pedagógica da Sala de Aula

2 Dimensão Pedagógica da Sala de Aula
 
Os alunos, alienados como o escravo, aceitam sua ignorância como justificativa para a existência do professor, mas diferentemente do escravo, jamais descobrem que eles educam o professor.
 
Paulo Freire
 
    Por dimensão pedagógica entendemos todo o trabalho realizado pelos professores, desde os momentos de planejamento da ação didática à sua ação efetiva em sala de aula. Como já apontamos na seção anterior, o papel do professor de língua portuguesa ou de línguas estrangeiras é criar conflitos para que os alunos, ao discuti-los, exerçam a argumentação e reflitam sobre a língua.
Pode parecer estranho a você que haja algo a ser discutido ou haja alguma reflexão a ser feita quando se trata do aprendizado de gramática, por exemplo? Provavelmente, sim. Você deve pensar que conteúdos estruturantes da língua são como são e não é necessário refletir sobre eles. Mas, afirmo a você que isso não é verdade. Pense, por exemplo, nas diferentes funções exercidas pelas orações:
 
Os deputados, que são corruptos, devem ser cassados.
 
Os deputados que são corruptos devem ser cassados.
 
    Como você entende a funcionalidade dessas frases? Elas querem dizer a mesma coisa? Qual o papel da oração encaixada? Importa saber que papel ela exerce? Ou importa somente saber que, pelo fato de estar entre vírgulas, é uma oração encaixada? Ou importa ainda saber que essa oração assume a posição de um argumento?
 
    Tudo isso, para que você pense na importância das ações do professor de língua portuguesa ou de línguas estrangeiras quando propõe aos seus alunos práticas de sala de aula que investigam o papel da língua/linguagem, e, portanto, na importância de práticas como: discussões em grupos, debates, jogos, pesquisas, projetos de trabalho, estudos dirigidos, seminários, estudos do meio, oficinas, dentre outras.
    Podemos, sem sombra de dúvidas, afirmar que as várias dimensões da sala de aula, quando em harmonia e em estreita relação com o plano de curso da disciplina, favorecem a aprendizagem. Elencamos aqui, “didatizando” nossa discussão, as seguintes dimensões:
 
·         relacional-interacional;
·         organizacional;
·         didático-espistemológica;
·         crítico-dialógica.
 
    Digo “didatizando” nossa discussão justamente para lembrá-lo de que essas dimensões não são estanques, mas estão articuladas umas às outras, o tempo todo, em sala de aula. Apenas para entender como cada uma delas está constituída, é que as separamos, mas elas só existem na relação de interdependência.
 
2.1 Dimensão relacional-interacional da sala de aula
 
    Estão contempladas aqui a relação professor-aluno, a relação aluno-aluno, e todas as possibilidades de interação que ocorrem em uma aula, em virtude das escolhas metodológicas do professor.
 
 
Refletindo!
 
Você acha que uma aula em grupo pode favorecer a aprendizagem? O que essa aula revelaria? Como os grupos são organizados? Isso faz alguma diferença na aprendizagem?
 
 
   
Nessa perspectiva, a aula pode se caracterizar por uma relação de autoritarismo do professor em relação aos seus alunos, pautada na voz do professor que determina o que pode ou não pode ser feito, o que é certo e o que é errado, aceitável ou não; ou pode se caracterizar por uma relação colaborativa entre professor e alunos e entre os alunos, pautada na possibilidade ampla de discussão sobre posicionamentos e pontos de vista, caracterizando um movimento de expansão das funções mentais superiores (VYGOTSKY, 1934/2000), que provoca aprendizagem e desenvolvimento.
    Um exemplo disso pode ser uma aula baseada na atividade em grupo com foco na discussão de um poema. Veja a transcrição da aula[1].
 
 
Atividade: alunos, reunidos, fazem uma primeira leitura individual do poema A Ausente; após a leitura, iniciam uma conversa sobre o poema, acompanhada do professor, que também participa da atividade como um leitor.
 
Poema:
 
A Ausente
Vinicius de Moraes
 
Amiga, infinitamente amiga
Em algum lugar teu coração bate por mim
Em algum lugar teus olhos se fecham à ideia dos meus.
Em algum lugar tuas mãos se crispam, teus seios
Se enchem de leite, tu desfaleces e caminhas
Como que cega ao meu encontro...
Amiga, última doçura
A tranquilidade suavizou a minha pele
E os meus cabelos. Só meu ventre
Te espera, cheio de raízes e de sombras.
Vem, amiga
Minha nudez é absoluta
Meus olhos são espelhos para o teu desejo
E meu peito é tábua de suplícios
Vem. Meus músculos estão doces para os teus dentes
E áspera é minha barba. Vem mergulhar em mim
Como no mar, vem nadar em mim como no mar
Vem te afogar em mim, amiga minha
Em mim como no mar...
 
 
 
 
 
Transcrição 3
 
Ju15           Sabe, ele deixa esses espaços abertos, essas dúvidas, para cada um interpretar da sua maneira.     
Rui19            Às vezes o poeta pode tanto escreve um caso que aconteceu, que ele viu, como ele pode escreve de alguma coisa que aconteceu com ele mesmo, um sentimento dele mesmo...
Cris20         Pode ser que ela escreva dessa forma para que cada um tivesse uma interpretação diferente / para situação da sua vida...
                                                                                                                 [também]
Ju16          E refletisse para cada um, né. Pensasse# []
Lara13        É, porque acho que não tá errado, que / em nenhum momento ele fala que realmente é a mãe dele e num / nem fala que é uma mulher que ele teve um caso. Então, fica a dúvida. Cada um interpreta do seu jeito, né?
Rui20          Mas / se / a relação não se sabe, se é de mãe e filho, ou de homem e mulher, mas / que se trata de uma mulher e de m homem, eu acho que é / acho, né, porque não tem com sê de mulher para mulher.
Prof1         Por que não tem como ser de mulher para mulher?
Rui21             Não tem // por causa do / do que fala aqui assim “meus músculos estão doces para seus dentes, áspera é minha barba”.
                                                                                                     [ A mulher não tem barba!]
                 a mulher não tem barba.
Ju17           De uma mulher ele também não ia falar de uma forma grosseira / é / seus músculos
                                                                                                     Rui22       [é]
relativo / relacionado a uma mulher.
Rui23             Porque mulher ele / ele trata de uma forma mais doce / ele coloca “amiga infinitamente amiga”, já começa / como uma coisa mais doce; “amiga última doçura” / ele trata de uma / de forma mais leve...
 
 
Observe e veja como as discussões sobre os diferentes sentidos atribuídos pelos alunos aos trechos do poema têm o papel de expandir a maneira de pensar, de criar conflitos para a discussão, de permitir que uns considerem os pontos de vista dos outros, de oferecer espaço e condições para a apresentação de argumentos sobre o texto.
    Observe também como relações assim constituídas podem ampliar as possibilidades de desenvolvimento da autonomia do aluno. Observe como as relações de dependência com o professor são minimizadas.
    Podemos destacar ainda, como aspecto de valor pedagógico relevante na aprendizagem, o diálogo professor-aluno, pautado na minimização da condição assimétrica entre ambos, ainda que saibamos não ser possível eliminar completamente essa assimetria de papéis – o de aluno e o de professor, pela própria condição sócio-historicamente situada de hierarquia de um em relação ao outro. A relação torna-se menos assimétrica quando o diálogo se configura como espaço colaborativo de construção de conhecimentos, com o professor acolhendo o dizer do aluno para dar consideração a ele e não para apontar seus erros.
 
2.2 Dimensão organizacional da sala de aula
 
    Essa dimensão está, de certa forma, ligada à sistematização do conhecimento e supõe ações como:
 
·         planejamento de aulas;
·         seleção de conteúdos e de procedimentos para abordagens desses conteúdos;
·         organização de atividades para os alunos;
·         avaliação do processo de ensino-aprendizagem.
 
    Esses aspectos correspondem à divisão de trabalho na atividade aula, àquilo que cabe ao professor, ou seja, às suas funções e responsabilidades. No entanto, essa mesma divisão de trabalho, na atividade aula, apresenta papel e responsabilidades do aluno.
    Veja que coisa interessante descobrimos quando investigamos o que já se discutiu a respeito do papel do aluno nas situações de aprendizagem: estamos falando da divisão de trabalho, ou seja, das responsabilidades de cada participante da atividade e, no entanto, os inúmeros trabalhos de pesquisa desenvolvidos na área educacional, focalizam o papel do professor e muito pouco o papel do aluno. É como se este fosse extensão daquele, como se o papel do aluno fosse dependente do papel do professor. Caso o professor não realize seu papel como maestria, o aluno sequer terá um papel.
    Não é verdade isso. Numa atividade, cada participante tem papel de responsabilidade e seria negar a concepção de aprendizagem à qual nos apoiamos, não considerar o aluno como co-participante do processo. Dessa forma, ele tem sim, papel de responsabilidade no andamento da atividade de aprendizagem. Esse papel está relacionado a:
 
·         envolvimento com a atividade proposta pelo professor;
·         participação em sala de aula, nas diferentes etapas da atividade;
·         cumprimento ativo das tarefas solicitadas (ou seja, não apenas como repetidor de conteúdos).
 
    Veja que assim articulados os papéis de aluno e de professor, a aula pode ser o lugar da articulação entre conhecimentos e de avanços no desenvolvimento do aluno.
 
 
 
Saiba Mais!
 
Que tal uma passeio pela internet? Sugiro que você leia um dos artigos a seguir, que discutem o papel do aluno em sala de aula:
 
- FERREIRA, M. A. G.Aluno domesticado VS aluno reflexivo. A visão do licenciado sobre o papel do aluno em sua futura prática pedagógica. Linguagem & Ensino, Vol. 4, n. 2, 2001. (p.107-122). Disponível em: <http://rle.ucpel.tche.br/php/edicoes/v4n2/g_maria.pdf>. Acesso em: 08/04/2011.
 
- MACHADO, S. C.; CHICIUC, L.; ARAUJO, V. L. O papel do professor e do aluno no Projeto Político Pedagógico da escola. Disponível em: <http://www.pucpr.br/eventos/educere/educere2006/anaisEvento/docs/CI-255-TC.pdf>. Acesso em: 08/04/2011.
 
- DAYRELL, J. T. A escola como espaço sócio-cultural. Disponível em: <http://pimentalab.net/blogs/estagio1/files/2010/09/Dayrell-1996-Escola-espa%C3%A7o-socio-cultural.pdf>. Acesso em: 08/04/2011.
 
 
 
2.3 Dimensão didático-epistemológica da sala de aula
 
          Essa dimensão contempla dois aspectos importantes:
 
·         a didática na sala de aula – os procedimentos e instrumentos utilizados para a abordagem dos diferentes conteúdos curriculares; nesse sentido, podemos pressupor que a didática procura responder à questão como fazer, e também à questão como utilizar os diferentes instrumentos disponíveis ao ensino.
·         o aspecto epistemológico – relacionado às forma de se conhecer algo, de se questionar pressupostos presentes nas abordagens teóricas e conceitos considerados; “toda prática escolar contém um direcionamento de atividades de constituição e sistematização de objetos de conhecimento, ainda que não possa ser reduzida a esse aspecto apenas” (COSTA, 2008, p.33).
 
    Levando-se em conta esses dois aspectos, cabe, nessa dimensão, pensar sobre o que e como o professor seleciona conteúdos para seu trabalho com os alunos.
O professor considera os conhecimentos prévios? considera os pré-requisitos para a aprendizagem? considera o papel social do conhecimento em questão? – e quando falamos em papel social, não estamos afirmando que todo conhecimento deve ter uma aplicação imediata e prática para a vida do aluno ou que todo conhecimento, para ter seu valor, precisa “fazer a vida do aluno melhorar”. Isso seria termos uma noção de conhecimento utilitarista, o que não deve acontecer. Importa o quanto os diferentes conhecimentos, quando articulados, constituem-se em possibilidades de interpretar a realidade de diferentes maneiras e, portanto, constituem-se em instrumentos novos para o aluno lidar com a realidade. Mas isso não se dá com o conhecimento fragmentado.
    Machado (2005, p.31), ao se referir à questão epistemológica, considera ser necessário
 
explorar o terreno epistemológico onde deverá ser plantada a semente da concepção do conhecimento como uma rede de significações em um especo de representações, uma teia de relações cuja construção não se inicia na escola (...)
 
    Nesse sentido, vamos pensar no professor de língua portuguesa ou de línguas estrangeiras e em tudo o que ele precisa planejar para sua aula. Aproveitamos as sugestões de Haidt (1999, p.99), apresentadas a professores de todas as áreas quanto ao ato de planejar, adaptando-as ao professor de línguas. Assim, planejar é:
 
·         analisar as características da clientela (aspirações, necessidades e possibilidades dos alunos) – considerando o que os alunos já conhecem da língua, o que os ambientes culturais aos quais têm acesso lhes oferece; a forma como a comunidade em que estão inseridos utiliza a linguagem;
·         refletir sobre os recursos disponíveis – há professores que têm à sua disposição materiais diversos, como livros em diferentes idiomas, revistas, artigos etc., no entanto, há contextos que possuem poucos materiais para serem explorados e utilizados pelos professores. Vale ressaltar que materiais de jornal, folhetos de propagandas, dentre outros, também são ricos para o trabalho do professor de línguas;
·         definir os objetivos educacionais considerados mais adequados para os alunos em questão – tudo dependerá do conhecimento que esses alunos já possuem sobre as práticas de linguagem;
·         selecionar e estruturar os conteúdos a serem assimilados, distribuindo-os ao longo do tempo disponível para seu desenvolvimento – lembrando que esses conteúdos não podem ser vistos como “camisa de forças” para o trabalho do professor, mas que devem, antes de tudo, articular-se aos conhecimentos que os alunos já possuem sobre a língua e seu uso social;
·         prever e organizar procedimentos, bem como atividades e experiências de construção do conhecimento consideradas mais adequadas para a consecução dos objetivos estabelecidos – aspecto de grande relevância, pois envolve as diferentes práticas de sala de aula, tais que sirvam de motor para a motivação dos alunos e de espaços para a dialogia em sala de aula;
·         prever os procedimentos de avaliação mais condizentes com os objetivos propostos – ressaltando que por avaliação entendemos um processo contínuo, que investiga a forma como os alunos estão aprendendo, para balizar as ações do professor e dos próprios alunos ao longo do trabalho.
 
 
2.4 Dimensão crítico-dialógica da sala de aula
 
    Esta é a dimensão mais significativa para um professor que tem como objeto de trabalho a língua e seu uso. Para discuti-la, vale a pena lembrar o que estamos considerando crítico e o que significa dialogia.
O conceito de crítica aqui considerado, como já discutido por Ninin (2006), está apoiado nos autores McLaren e Giroux (1997/2000), McLaren (1977/1997), dentre outros. Para esses autores, a natureza dialética da teoria crítica nos permite ver a escola como um terreno cultural que confere poder ao aprendiz e promove a autotransformação, e não simplesmente como uma arena de doutrinação ou socialização ou apenas como um local de instrução. Para os autores, a pedagogia crítica está preocupada com a forma por meio da qual conhecimento produz tanto o significado como a influência, como ele vem a ser uma moeda cultural que ressoa e estende os interesses que tanto os professores como os estudantes legitimam dentro do contexto da sala de aula.
Ao adotar o paradigma crítico, precisamos conceituar pensamento crítico, foco de inúmeros trabalhos na atualidade, por conta dos diferentes significados que assume na área educacional. Fisher (2001/2005), em sua obra Critical Thinking: An Introduction, afirma que é preciso desenvolver habilidades para pensar criticamente e que esse pensar crítico envolve uma competência acadêmica voltada à interpretação ativa e à avaliação de observações e comunicações, informações e argumentação.
Argui, ainda, a autora, que o pensar crítico não ocorre porque alguém assim o deseja, nem tampouco ele é científico por opção do pensante, mas que está relacionado a um princípio ativo que move o indivíduo em direção a encontrar relevância e razões para o pensamento, razões essas imbricadas em seu arcabouço de conhecimentos.
Essa relevância, no entanto, surge à medida que o indivíduo torna-se capaz de questionar sua forma de pensar (metacognição), de avaliar e selecionar informações que permitam a ele reorganizar suas estruturas mentais, estando esse processo relacionado não somente às características linguísticas da argumentação, mas também à maneira como se estabelece o confronto entre esse pensar e as condições sócio-histórico-culturais do indivíduo.
Assim, embora as habilidades linguísticas para pensar criticamente sejam fundamentais, não há como prescrever caminhos lineares para esse pensar, nem tampouco considerar que unicamente por ação ou influência de outrem um ser humano seja capaz de fazê-lo. Há, no entanto, como pensar em ações da prática docente que mais favorecem esse pensar.
Você pode pensar em sua vida acadêmica e tentar se lembrar de momentos que mais o(a) fizeram pensar, que mais conflitos geraram para você, e procurar pelos procedimentos que desencadearam esse pensar. Foram procedimentos apresentados por seus professores? Por seus colegas de classe? Foram determinadas perguntas capciosas, como habitualmente nos referimos quando a pergunta é terrível e nos desestabiliza?
    Uma vez sendo possível pensar a aula como o lugar do pensar crítico, fica relativamente fácil entender como esse momento assume características dialógicas. Por dialogia, como já dissemos anteriormente, ao discutir língua / linguagem, entendemos a perspectiva desta última que considera, na constituição do ser humano, o papel do outro como fundamental.
Isso significa dizer que a linguagem por nós utilizada está sempre entrecortada e tecida por meio dos enunciados de outros seres humanos. Os espaços dialógicos são constituídos com base nas interações das quais participam os sujeitos e essas interações se caracterizam pela presença de questionamentos que tanto levam o sujeito a argumentar e a fundamentar seus pontos de vista em relação a algo, quanto oferecem a ele elementos que dialogam com seu próprio pensar em busca de ressignificação do objeto.
    Em sala de aula, essa dimensão crítico-dialógica se caracteriza pelas possibilidades criadas por professor e pelos alunos para colocar em discussão os assuntos escolhidos como objeto do conhecimento e tanto mais cumprirá o papel de ser efetivamente crítico-dialógica a aula, quanto maior forem as intervenções do professor capazes de gerar conflitos e de despertar a necessidade de argumentação fundamentada.
 
 
Parada para reflexão!!!
 
    Observe a atividade e complete o quadro proposto, destacando o que você considera relevante para cada uma das dimensões de sala de aula, em relação ao aluno, ao professor e à atividade.
 
 
Relato de aula:
Contexto da aula: turma de 7o ano do Ensino Fundamental, aula de Língua Portuguesa em uma escola pública, discussão da crônica da Revista Veja São Paulo – “O desgaste das palavras” (VEJA SP, 13 de Agosto, 2008). Apresentamos, inicialmente, o texto, para que você compreenda a proposta da atividade[2].
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Texto “O desgaste das palavras”, de Walcyr Carrasco
 
Sou um tonto. Dia destes recebi um recado na secretária eletrônica pedindo retorno urgente. Liguei. Era um corretor de imóveis querendo me vender um lançamento.
– Qual era a urgência? – perguntei, irritado.
– Bem... Estamos selecionando alguns clientes e...
Conversa mole. As pessoas usam a palavra "urgente" em mensagens de todo tipo. Ainda sou daqueles que se assustam de leve com um e-mail "urgente". Para logo descobrir que se trata de um assunto muito corriqueiro. A palavra está perdendo a força. Daqui a pouco não vai significar mais nada. A mesma coisa acontece com o verbo "revelar". Abro uma revista e vejo: fulana de tal "revela" que gosta de ir à praia. Ou: a atriz tal "revela" que vai pintar o cabelo de loiro. Isso é revelação que se preze? Resultado: quando se quer realmente revelar algo se usa "denuncia" ou "confessa". Até que também sejam desgastadas pelo uso impróprio.
E vip? A sigla surgiu como abreviação de "very important people". Os vips tinham acesso preferencial a festas e eventos de todo tipo. Obviamente, todo mundo quis ser tratado como vip. Alguns shows e camarotes carnavalescos ficam lotados por manadas de vips. Para diferenciar "vips" entre si, nos lugares mais disputados surgiram chiqueirinhos para os "supervips" ou "vips dos vips". Em resumo: "vip" não significa absolutamente coisa nenhuma – somente que a pessoa é rápida para descolar um convite com pulseirinha.
Os anúncios imobiliários são pródigos em detonar palavras. "Exclusivo" é um exemplo. Quase todos falam em "condomínio exclusivo", "espaço exclusivo" (e não havia de ser, se o proprietário está pagando?). De tão comum, "exclusivo" deixou de ser "exclusivo". Veio o "diferenciado". Ou "único". Mas como um apartamento pode ser "diferenciado" ou "único" se está em um prédio com mais cinqüenta iguais?
Elogiar também ficou difícil. Antes bastava dizer:
– Você está bonita.
A cortesia não exige sinceridade. Mesmo que a sujeita pareça ter saído de um sarcófago, sempre se dá um jeito de dizer que está bem.
– Que vestido lindo! Você ficou bonita.
Portanto, se quero realmente adoçar, digo:
– Você é muito bonita.
Algumas vezes parece pouco, e atinjo os píncaros:
– Você é o máximo.
Mas o que vem depois de "máximo"? Já andaram usando "deusa", mas acho meio cafona. E "santa", por incrível que pareça, perdeu o jeito de elogio, principalmente para quem acaba de fazer regime, botou silicone nos seios e fez preenchimento labial.
A palavra "amigo" é incrível. Implica uma relação especial. A maioria fala em "amigos" referindo-se a conhecidos distantes. Pode ter visto a pessoa duas ou três vezes e já é "amigo". O mesmo ocorre com "abraço". Terminar uma mensagem com um "abraço" era suficiente. Se envio um abraço é porque realmente tenho vontade de oferecer meu carinho. Foi tão banalizado que agora se usa "grande abraço", "forte abraço". Já é pouco, e surgiu o "beijo no coração" no fim das mensagens realmente amigáveis. A seguir, o que virá? Algum termo cirúrgico? Minha imaginação não alcança.
Minha vontade é voltar a usar os termos com a força que eles realmente têm: "abraço" é "abraço", "amigo" é "amigo". Por que deixar as palavras se desgastarem? Se o que têm de mais belo é justamente sua história e o sentimento que contêm? Enfim, tudo o que lhes dá realmente significado.
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Professor avisa aos alunos que no dia seguinte será discutido um texto intitulado “O desgaste das palavras” e que gostaria que todos pensassem em o que esse título poderia significar, trazendo seus argumentos por escrito, para a aula do dia seguinte. Nenhum aluno perguntou ao professor quem era o autor do texto e, dessa forma, também o professor não o revelou.
 
Na aula do dia seguinte, ocorreu a atividade relacionada ao texto e parte dela está transcrita a seguir. Utilize o trecho para reflexão sobre as dimensões da sala de aula.
 
 
 
 
Transcrição 4:
 
Pr1:         Pessoal, vocês pensaram sobre o que eu pedi, sobre o que significava pra vocês um título assim, ó: “O desgaste das palavras” Quem pensou nisso? // Alguém escreveu? Eu pedi por escrito, lembram-se? // Ótimo! Parece que vocês escreveram. To vendo vários. // Então, vamos lá. Quem gostaria de falar primeiro?
Ana1:      Eu não sei, mas eu acho que o texto vai falar sobre não falar demais. Tipo assim, não falar exagero, jogar conversa fora, por exemplo.
Pr2:         O que vocês acham, pessoal? Quem pensou como a Ana? Alguém?
Ju1:         Eu. Acho que é mais ou menos isso, assim, que a gente fala muito o que não precisa. Tem gente que quando ta conversando, vai falando, falando, e não dá pra entender, porque parece que a pessoa ta falando de uma coisa e emenda na outra e a gente que ta ouvindo não consegue perceber quando ela muda o assunto.
Pr3:         E aí, turma. Quem tem algum argumento em relação ao que disse a Ju... ou ao que disse a Ana...
Cris1:      Eu acho que tenho. Veja se é isso. Eu to pensando que não deve ser isso que a Ju falou, mas que pode ser quando a gente não usa direito uma palavra.
Ju2:         Mas não é a mesma coisa que eu disse, professor?
Pr4:         E aí, Ju. É a mesma coisa?
Ju3:         Mas fui eu que te perguntei.
Pr5:         Mas eu passei a pergunta pra você. Que tal?! Quer pensar, Ju? // Cris, você. Por que você acha que seu argumento é contrário ao da Ju? Você disse assim: “não deve ser isso que a Ju disse”. // Explique mais o que você pensa. Ou alguém gostaria de explicar...
Luiz1:      Eu posso. Acho que entendi o que a Cris quis dizer. Acho que ela ta falando que a Ju entendeu que o texto vai falar de uma conversa e a Cris entendeu que o texto, não sei onde que é, se é conversa ou não, mas ele vai falar de palavra e não de // assim // uma coisa grande, tipo conversa.
Ju4:         Ah, você ta falando que eu entendi palavra como sendo a conversa, né? É // acho que foi mesmo. Agora que to vendo palavra no título. Só pensei no quanto umas pessoas falam demais. Mas pode ser então isso que a Cris disse, da palavra usada errada.
Pr6:         Então lá vai mais uma pergunta: Quando é que uma palavra é usada “errada”, como você disse, Ju. Quando, pessoal? Alguém quer falar sobre isso?
Luiz2:      É fácil. Quando a gente não sabe o que ela significa, mas ouve os outros, acha bonito e fala. Minha mãe faz isso. Escuta lá onde ela trabalha e depois usa lá em casa. A gente não entende nada, mas ela também não (risos da turma).
Pr7:         Mas as palavras mudam de significado, gente?
Alice1:     Acho que pode mudar, mas acho que também pode ser usadas errada, sem a pessoa saber.
Pr8:         Isso é verdade, Alice. Mas olha, vamos ver mais um elemento para ajudar vocês a pensarem no que o texto pode estar querendo nos dizer. É uma figura que acompanha o texto. Vejam[3] a imagem.
Alice2:     Ah! Mas essa figura é igual as que tem na Revista Veja. Tem lá em casa, professor! Se eu soubesse eu ia procurar lá. É de lá? // Então. Dá pra pensar na coisa que a Cris falou. Parece que tem uma pessoa velha e uma mais nova. A mais nova ta falando palavras que a mais velha não entende. Eu acho isso.
Ju5          É. To achando também. Pode se isso mesmo. Não é aquele negócio que você falou, professor, que as palavras vão mudando de significado, dependendo de quem ta usando elas?
Pr9:         Isso, Ju. Dependendo de quem as utiliza, elas assumem outro significado. Mas pode isso, gente?
Suzi1:      A gente discutiu isso naquela aula que você deu, professor. Quando a gente usou outro texto da revista Veja. Acho que era assim: uma palavra pode mudar de significado nos lugares diferentes que ela é falada. To lembrando que a gente discutiu aquilo que os meninos diz lá na Febem “colmeia” que é guarda-roupa. Lá que dizer isso, mas aqui não.
Pr10:        Sim, sim, sim. Suzi. Você lembrou bem essa questão. Nós estávamos estudando como a língua pode ser usada socialmente, lembram-se? Nos diferentes eventos, situações, contextos. Bem lembrado, Suzi. Alguém quer complementar o que disse a Suzi, pessoal?...
(...)
Jair3:       Aquilo que a Cris falou do desenho. Eu to pensando que se é da Veja, então é uma crítica de alguma coisa, esse texto. É, professor?
Lu1:        É, porque o carinha que escreve na Veja, lá nessa página, sempre faz crítica. Ele deve de ta reclamando de alguma coisa que as pessoas // quando elas usa a palavra errada.
Prof11:     Vamos ver? A gente pode ler agora e depois nós podemos continuar a discussão. Mas pra ler, vocês já vão fazer uma coisa: quero que todo mundo leia pensando no seguinte: o que será que o cronista está criticando? Em que trechos do texto vocês acham que está fazendo isso mais fortemente? Vamos lá, pessoal, Todo mundo lendo pra depois nós discutirmos.
(...)
 
 
Quadro IV: As dimensões da sala de aula
 
Aluno
Professor
Atividade
Dimensão relacional-interacional
 
 
 
 
 
 
Dimensão organizacional
 
 
 
 
 
 
Dimensão didático-epistemológica
 
 
 
 
 
 
Dimensão crítico-dialógica
 
 
 
 
 
 

 
    Agora, veja a proposta de atividade relacionada ao mesmo texto, encontrada em um endereço eletrônico de busca[4]:
 
Figura 1 - Atividade com o texto “O desgaste das palavras”
:
 
    Você gostaria de comentar algo sobre essa atividade proposta aos alunos? Qual das dimensões é a mais prejudicada, se pensarmos que essa foi a única tarefa dada aos alunos sobre esse texto?
 
 
   As seções a seguir, focalizando os aspectos mais relevantes do ensino de língua portuguesa e de línguas estrangeiras – desenvolvimento da linguagem oral, das competências leitora e escritora, e análise e reflexão sobre a língua –, procuram discutir as diferentes práticas de sala de aula, constituintes da dimensão pedagógica do fazer docente.
   O que é preciso ficar bem claro aqui é que, seja qual for a prática pedagógica escolhida, ela requer do professor o planejamento da aula, a descrição clara dos objetivos e dos procedimentos escolhidos, considerando seu grupo de alunos e seus conhecimentos em relação às competências: gramatical, sociolinguística, discursiva e estratégica (Canale, 1983, apud Oliveira, 2010, p.47). Essa discussão nasceu com o linguista Dell Hymes, em 1971e foi ampliada por Canale.
 
a.       sua competência gramatical – o que os alunos já conhecem em relação às regras e características da língua (conhecimentos sistematizados, relacionados às estruturas da língua, à sintaxe, morfologia, semântica, ortografia);
b.      sua competência sociolinguística – o que os alunos conhecem em relação às regras socioculturais que regem o uso da língua, em relação aos processos interacionais, à adequação das diferentes construções verbais às situações de uso da língua, às diferenças entre oralidade e escrita;
c.       sua competência discursiva – o que os alunos conhecem em relação às regras que governam uma comunidade discursiva, aos diferentes gêneros textuais orais e escritos;
d.      sua competência estratégica – o que os alunos conhecem em relação ao uso de estratégias verbais e não verbais, ao uso da argumentação e de funcionamento da linguagem em situações de comunicação.
 


[1] Essa aula, discutida e analisada em um TCC, focaliza um grupo de alunos de 3a série de Ensino Médio e seu professor de literatura, discutindo possíveis sentidos atribuídos ao poema de Vinícius de Moraes, A Ausente, para entender como a obra de Vinícius de Moraes se situa na corrente literária pós-moderna.
[2] O texto “O desgaste das palavras” encontra-se disponível em<http://vejasp.abril.com.br/revista/edicao-2073/o-desgaste-das-palavras> Acesso em: 30/05/2011..
[3] Professor apresenta à turma somente a imagem retirada do texto da revista Veja, de 13 de agosto de 2008. A imagem apresenta duas pessoas em situação de comunicação, uma jovem e uma já mais velha. Associado ao jovem, há um balão de fala, cujo enunciado é indicado por “bla bla bla bla”. O olhar da pessoa mais velha revela desconfiança em relação àquilo que está sendo dito pelo jovem, indicando a não compreensão das palavras.
[4] Disponível em: <http://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20110225161717AAA5nb7> Acesso em: 12/04/2011.

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