sábado, 9 de novembro de 2013

Queixas

Queixas
Ana Flores

Ele mesmo dissera que se ela não estivesse satisfeita que fosse se queixar ao bispo. E ela foi. Contou tudo o que havia se passado entre eles: a acusação de ser ela a culpada dos pesadelos dele, os encontros só em dias sorteados no calendário, e não deixou de mencionar que ele não a queria com as unhas dos pés pintadas de vermelho, como ela sempre usara até conhecê-lo. Quando ela terminou, o bispo apenas disse, com a voz baixa e calma de quem passou a vida a ouvir queixas: "Volte hoje à noite, às dez. E venha com as unhas dos pés pintadas de vermelho."

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Livros Livres: Para quem quiser participar dessa ação de incentivo à leitura, ela pode ser feita em qualquer lugar:
1. Escolha livros que tenha em casa e que estejam esquecidos nas suas estantes, prateleiras e gavetas, aqueles que não serão mais lidos.
2. Escolha um local público de sua preferência ou onde você acha que seria legal uma pessoa encontrá-lo.
3. Deixe o livro ali.
4. Em dia de chuva escolha locais protegidos como mesas e cadeiras de restaurantes, lanchonetes, sorveterias, áreas de convivência em pousadas e hotéis.
5. Sugestões de lugares públicos para deixar seus livros: padarias, sorveterias, barzinhos, na recepção de algum hotel ou pousada, nos bancos ao longo da beira-mar, nas pracinhas e restaurantes, ou onde você achar melhor.
Dessa forma outra pessoa poderá encontrar o livro para ler, emprestar e passar adiante.

domingo, 20 de outubro de 2013

O moço do saxofone


O moço do saxofone
Lygia Fagundes Telles

Eu era chofer de caminhão e ganhava uma nota alta com um cara que fazia contrabando. Até hoje não entendo direito por que fui parar na pensão da tal madame, uma polaca que quando moça fazia a vida e depois que ficou velha inventou de abrir aquele frege-mosca. Foi o que me contou o James, um tipo que engolia giletes e que foi o meu companheiro de mesa nos dias em que trancei por lá. Tinha os pensionistas e tinha os volantes, uma corja que entrava e saía palitando os dentes, coisa que nunca suportei na minha frente. Teve até uma vez uma dona que mandei andar só porque no nosso primeiro encontro, depois de comer um sanduíche, enfiou um palitão entre os dentes e ficou de boca arreganhada de tal jeito que eu podia ver até o que o palito ia cavucando. Bom, mas eu dizia que no tal frege-mosca eu era volante. A comida, uma bela porcaria e como se não bastasse ter que engolir aquelas lavagens, tinha ainda os malditos anões se enroscando nas pernas da gente. E tinha a música do saxofone.

Não que não gostasse de música, sempre gostei de ouvir tudo quanto é charanga no meu rádio de pilha de noite na estrada, enquanto vou dando conta do recado. Mas aquele saxofone era mesmo de entortar qualquer um. Tocava bem, não discuto. O que me punha doente era o jeito, um jeito assim triste como o diabo, acho que nunca mais vou ouvir ninguém tocar saxofone como aquele cara tocava.

— O que é isso? — eu perguntei ao tipo das giletes. Era o meu primeiro dia de pensão e ainda não sabia de nada. Apontei para o teto que parecia de papelão, tão forte chegava a música até nossa mesa. Quem é que está tocando?

— É o moço do saxofone.

Mastiguei mais devagar. Já tinha ouvido antes saxofone, mas aquele da pensão eu não podia mesmo reconhecer nem aqui nem na China.

— E o quarto dele fica aqui em cima?

James meteu uma batata inteira na boca. Sacudiu a cabeça e abriu mais a boca que fumegava como um vulcão com a batata quente lá no fundo. Soprou um bocado de tempo a fumaça antes de responder.

— Aqui em cima.

Bom camarada esse James. Trabalhava numa feira de diversões, mas como já estivesse ficando velho, queria ver se firmava num negócio de bilhetes. Esperei que ele desse cabo da batata, enquanto ia enchendo meu garfo.

— É uma música desgraçada de triste — fui dizendo.

— A mulher engana ele até com o periquito — respondeu James, passando o miolo de pão no fundo do prato para aproveitar o molho. — O pobre fica o dia inteiro trancado, ensaiando. Não desce nem para comer. Enquanto isso, a cabra se deita com tudo quanto é cristão que aparece.

— Deitou com você?

— É meio magricela para o meu gosto, mas é bonita. E novinha. Então entrei com meu jogo, compreende? Mas já vi que não dou sorte com mulher, torcem logo o nariz quando ficam sabendo que engulo gilete, acho que ficam com medo de se cortar...

Tive vontade de rir também, mas justo nesse instante o saxofone começou a tocar de um jeito abafado, sem fôlego como uma boca querendo gritar, mas com uma mão tapando, os sons espremidos saindo por entre os dedos. Então me lembrei da moça que recolhi uma noite no meu caminhão. Saiu para ter o filho na vila, mas não agüentou e caiu ali mesmo na estrada, rolando feito bicho. Arrumei ela na carroceria e corri como um louco para chegar o quanto antes, apavorado com a idéia do filho nascer no caminho e desandar a uivar que nem a mãe. No fim, para não me aporrinhar mais, ela abafava os gritos na lona, mas juro que seria melhor que abrisse a boca no mundo, aquela coisa de sufocar os gritos já estava me endoidando. Pomba, não desejo ao inimigo aquele quarto de hora.

— Parece gente pedindo socorro — eu disse, enchendo meu copo de cerveja.  — Será que ele não tem uma música mais alegre?

James encolheu o ombro.

— Chifre dói.

Nesse primeiro dia fiquei sabendo ainda que o moço do saxofone tocava num bar, voltava só de madrugada. Dormia em quarto separado da mulher.

—- Mas por quê? — perguntei, bebendo mais depressa para acabar logo e me mandar dali. A verdade é que não tinha nada com isso, nunca fui de me meter na vida de ninguém, mas era melhor ouvir o tro-ló-ló do James do que o saxofone.

— Uma mulher como ela tem que ter seu quarto — explicou James, tirando um palito do paliteiro. — E depois, vai ver que ela reclama do saxofone.

— E os outros não reclamam?

— A gente já se acostumou.

Perguntei onde era o reservado e levantei-me antes que James começasse a escarafunchar os dentões que lhe restavam. Quando subi a escada de caracol, dei com um anão que vinha descendo. Um anão, pensei. Assim que saí do reservado dei com ele no corredor, mas agora estava com uma roupa diferente. Mudou de roupa, pensei meio espantado, porque tinha sido rápido demais. E já descia a escada quando ele passou de novo na minha frente, mas já com outra roupa. Fiquei meio tonto. Mas que raio de anão é esse que muda de roupa de dois em dois minutos? Entendi depois, não era um só, mas uma trempe deles, milhares de anões louros e de cabelo repartidinho do lado.

— Pode me dizer de onde vem tanto anão? — perguntei à madame, e ela riu.

— Todos artistas, minha pensão é quase só de artistas...

Fiquei vendo com que cuidado o copeiro começou a empilhar almofadas nas cadeiras para que eles se sentassem. Comida ruim, anão e saxofone. Anão me enche e já tinha resolvido pagar e sumir quando ela apareceu. Veio por detrás, palavra que havia espaço para passar um batalhão, mas ela deu um jeito de esbarrar em mim.

— Licença?

Não precisei perguntar para saber que aquela era a mulher do moço do saxofone. Nessa altura o saxofone já tinha parado. Fiquei olhando. Era magra, sim, mas tinha as ancas redondas e um andar muito bem bolado. O vestido vermelho não podia ser mais curto. Abancou-se sozinha numa mesa e de olhos baixos começou a descascar o pão com a ponta da unha vermelha. De repente riu e apareceu uma covinha no queixo. Pomba, que tive vontade de ir lá, agarrar ela pelo queixo e saber por que estava rindo. Fiquei rindo junto.

— A que horas é a janta? — perguntei para a madame, enquanto pagava.

— Vai das sete às nove. Meus pensionistas fixos costumam comer às oito — avisou ela, dobrando o dinheiro e olhando com um olhar acostumado para a dona de vermelho. — O senhor gostou da comida?

Voltei às oito em ponto. O tal James já mastigava seu bife. Na sala havia ainda um velhote de barbicha, que era professor parece que de mágica e o anão de roupa xadrez. Mas ela não tinha chegado. Animei-me um pouco quando veio um prato de pastéis, tenho loucura por pastéis. James começou a falar então de uma briga no parque de diversões, mas eu estava de olho na porta. Vi quando ela entrou conversando baixinho com um cara de bigode ruivo. Subiram a escada como dois gatos pisando macio. Não demorou nada e o raio do saxofone desandou a tocar.

— Sim senhor — eu disse e James pensou que eu estivesse falando na tal briga.

— O pior é que eu estava de porre, mal pude me defender!

Mordi um pastel que tinha dentro mais fumaça do que outra coisa. Examinei os outros pastéis para descobrir se havia algum com mais recheio.

— Toca bem esse condenado. Quer dizer que ele não vem comer nunca?

James demorou para entender do que eu estava falando. Fez uma careta. Decerto preferia o assunto do parque.

— Come no quarto, vai ver que tem vergonha da gente — resmungou ele, tirando um palito. — Fico com pena, mas às vezes me dá raiva, corno besta. Um outro já tinha acabado com a vida dela!

Agora a música alcançava um agudo tão agudo que me doeu o ouvido. De novo pensei na moça ganindo de dor na carroceria, pedindo ajuda não sei mais para quem.

— Não topo isso, pomba.

— Isso o quê?

Cruzei o talher. A música no máximo, os dois no máximo trancados no quarto e eu ali vendo o calhorda do James palitar os dentes. Tive ganas de atirar no teto o prato de goiabada com queijo e me mandar para longe de toda aquela chateação.

— O café é fresco? — perguntei ao mulatinho que já limpava o oleado da mesa com um pano encardido como a cara dele.

— Feito agora.

Pela cara vi que era mentira.

— Não é preciso, tomo na esquina.

A música parou. Paguei, guardei o troco e olhei reto para aporta, porque tive o pressentimento que ela ia aparecer. E apareceu mesmo com o aninho de gata de telhado, o cabelo solto nas costas e o vestidinho amarelo mais curto ainda do que o vermelho. O tipo de bigode passou em seguida, abotoando o paletó. Cumprimentou a madame, fez ar de quem tinha muito o que fazer e foi para a rua.

— Sim senhor!

— Sim senhor o quê? — perguntou James.

— Quando ela entra no quarto com um tipo, ele começa a tocar, mas assim que ela aparece, ele pára. Já reparou? Basta ela se enfurnar e ele já começa.

James pediu outra cerveja. Olhou para o teto.

— Mulher é o diabo...

Levantei-me e quando passei junto da mesa dela, atrasei o passo. Então ela deixou cair o guardanapo. Quando me abaixei, agradeceu, de olhos baixos.

— Ora, não precisava se incomodar...

Risquei o fósforo para acender-lhe o cigarro. Senti forte seu perfume.

— Amanhã? — perguntei, oferecendo-lhe os fósforos. — Às sete, está bem?

— É a porta que fica do lado da escada, à direita de quem sobe.

Saí em seguida, fingindo não ver a carinha safada de um dos anões que estava ali por perto e zarpei no meu caminhão antes que a madame viesse me perguntar se eu estava gostando da comida. No dia seguinte cheguei às sete em ponto, chovia potes e eu tinha que viajar a noite inteira. O mulatinho já amontoava nas cadeiras as almofadas para os anões. Subi a escada sem fazer barulho, me preparando para explicar que ia ao reservado, se por acaso aparecesse alguém. Mas ninguém apareceu. Na primeira porta, aquela à direita da escada, bati de leve e fui entrando. Não sei quanto tempo fiquei parado no meio do quarto: ali estava um moço segurando um saxofone. Estava sentado numa cadeira, em mangas de camisa, me olhando sem dizer uma palavra. Não parecia nem espantado nem nada, só me olhava.

— Desculpe, me enganei de quarto — eu disse, com uma voz que até hoje não sei onde fui buscar.

O moço apertou o saxofone contra o peito cavado.

— E na porta adiante — disse ele baixinho, indicando com a cabeça.

Procurei os cigarros só para fazer alguma coisa. Que situação, pomba. Se pudesse, agarrava aquela dona pelo cabelo, a estúpida. Ofereci-lhe cigarro.

— Está servido?

— Obrigado, não posso fumar.

Fui recuando de costas. E de repente não agüentei. Se ele tivesse feito qualquer gesto, dito qualquer coisa, eu ainda me segurava, mas aquela bruta calma me fez perder as tramontanas.

— E você aceita tudo isso assim quieto? Não reage? Por que não lhe dá uma boa sova, não lhe chuta com mala e tudo no meio da rua? Se fosse comigo, pomba, eu já tinha rachado ela pelo meio! Me desculpe estar me metendo, mas quer dizer que você não faz nada?

— Eu toco saxofone.

Fiquei olhando primeiro para a cara dele, que parecia feita de gesso de tão branca. Depois olhei para o saxofone. Ele corria os dedos compridos pelos botões, de baixo para cima, de cima para baixo, bem devagar, esperando que eu saísse para começar a tocar. Limpou com um lenço o bocal do instrumento, antes de começar com os malditos uivos.

Bati a porta. Então a porta do lado se abriu bem de mansinho, cheguei a ver a mão dela segurando a  maçaneta para que o vento não abrisse demais. Fiquei ainda um instante parado, sem saber mesmo o que fazer, juro que não tomei logo a decisão, ela esperando e eu parado feito besta, então, Cristo-Rei!? E então? Foi quando começou bem devagarinho a música do saxofone. Fiquei broxa na hora, pomba. Desci a escada aos pulos. Na rua, tropecei num dos anões metido num impermeável, desviei de outro, que já vinha vindo atrás e me enfurnei no caminhão. Escuridão e chuva. Quando dei a partida, o saxofone já subia num agudo que não chegava nunca ao fim. Minha vontade de fugir era tamanha que o caminhão saiu meio desembestado, num arranco.

O texto acima foi publicado no livro "Antes do Baile Verde", José Olympio Editores - Rio de Janeiro, 1979, e relacionado entre "Os cem melhores contos brasileiros do século", uma seleção de Ítalo Moriconi, Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2000, pág. 233.

domingo, 13 de outubro de 2013

OS GIGANTES DA MONTANHA- GRUPO GALPÃO

OS GIGANTES
DA MONTANHA



 
De Luigi Pirandello, com o Grupo Galpão e direção de Gabriel Villela

Quem foi Pirandello


Natural de Agrigento, na região da Sicília, nascido em 1867, Luigi Pirandello foi dramaturgo, poeta, contista e romancista. Entre suas peças mais conhecidas estão Henrique IV e Seis personagens à procura de um autor. Em 1934, conquistou o Nobel de Literatura. Sua obra explora temas relacionados aos bastidores do fazer cênico. Morreu em 1936, vítima de pneumonia, antes de terminar Os gigantes da montanha.

O enredo

Dividido em dois atos, Os gigantes da montanha narra a chegada de uma companhia teatral decadente a uma vila isolada do mundo, governada pelo mago Cotrone. A trupe encontra-se em declínio por obsessão de sua atriz, a condessa Ilse, em montar A fábula do filho trocado. Insistindo que o grupo permaneça no lugarejo, representando apenas para si mesmos, Cotrone constrói os fantasmas dos personagens que faltam para completar o elenco. No entanto, a condessa Ilse insiste que o espetáculo deve ser visto por um grande público. A solução será chamar os Gigantes da montanha, povo vizinho que não valoriza a arte.

Canções do espetáculo


La arrabiatta, de Nino Rota; Il mondo, de Jimmy Fontana; Jesus bambino, de Lucio Dalla; Ciao amore ciao, de Luigi Tenco; Io che amo solo te, de Sergio Endrigo; Bella ciao e Nana, nana tidoletto, canções populares da resistência italiana; La golondrina, de Narciso Serradell Sevilla; Les pêcheurs de perles, de Georges Bizet.

Palco e bastidores

Elenco: Antonio Edson (Cromo), Arildo de Barros (Conde), Beto Franco (Duccio Doccia/Anjo 101), Eduardo Moreira (Cotrone), Inês Peixoto (Condessa Ilse), Júlio Maciel (Spizzi/Soldado), Luiz Rocha (Quaquèo), Lydia Del Picchia (Mara-Mara), Paulo André (Batalha), Regina Souza (Diamante/Madalena), Simone Ordones
(A Sgriccia), Teuda Bara (Sonâmbula).

Direção:
Gabriel Villela. Assistência de direção: Ivan Andrade e Marcelo Cordeiro. Tradução: Beti Rabetti. Antropologia da voz: Francesca Della Monica. Direção musical e arranjos: Ernani Maletta. Preparação vocal: Babaya. Iluminação: Chico Pelúcio e Wladimir Medeiros.

Duração do espetáculo

Uma hora e 20 minutos

De volta à praça

“Rezarei para que Santa Clara nos dê uma noite estrelada, livre de ventos fortes e chuva, para celebrar esse novo encontro do Grupo Galpão com a genialidade de Gabriel Villela. Através da fábula de Pirandello, poderemos sentir a vibração de nossos corações evocando poesia e sonho para nossas vidas!”
Inês Peixoto, atriz

“Encontrar o público de Belo Horizonte, na rua, é sempre uma festa e uma grande alegria. Espero que Os gigantes da montanha ajude de alguma maneira a despertar nas pessoas o desejo de imaginar, sonhar, buscar novos limites e dimensões. No fundo, a peça fala da capacidade que a arte tem – e precisa desenvolver – de fazer com que as pessoas busquem outros horizontes, novas perspectivas.”

•  Eduardo Moreira, ator

‘‘É bom voltar para a Praça do Papa, esse cenário natural. Que nossos amigos e o público querido recebam o Galpão de braços abertos. Vai ser bonito e poético!’’
•  Teuda Bara, atriz

“Estar junto com o Galpão e Pirandello e celebrar essa união no teatro grego da Praça do Papa, com o público de Belo Horizonte, é a verdadeira epifania teatral.”
•  Gabriel Villela, diretor

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Práticas Pedagógicas relacionadas à Leitura

4 PRÁTICAS PEDAGÓGICAS RELACIONADAS À LEITURA
 
Read not to contradict and confute, nor to believe and take for granted, nor to find talk and discourse, but to weigh and consider[1].
Francis Bacon
 
    Continuando nossa reflexão sobre os aspectos pedagógicos do trabalho de professores de língua portuguesa e de línguas estrangeiras, destacamos um dos mais relevantes: a leitura. Koch e Elias (2006, p.12), partindo da concepção interacional dialógica da língua, consideram “leitura como uma atividade de produção de sentido” que toma como base a interação autor-texto-leitor. Nesse processo, os sujeitos “são vistos como atores/construtores sociais, sujeitos ativos que – dialogicamente – se constroem e são construídos no texto”.
O significado atribuído a um texto sempre dependerá do conhecimento de mundo do leitor, de seus conhecimentos prévios e dos objetivos desse leitor em relação à leitura do texto. Nessa perspectiva, ler exige mais do que o conhecimento do código linguístico, mas a relação entre conhecimentos de mundo ou enciclopédicos, conhecimentos linguísticos e conhecimentos interacionais.
 
 
 
Refletindo!
 
Também podemos dizer que a leitura mobiliza as capacidades de linguagem, já estudadas: capacidade de ação, capacidade discursiva e capacidade linguístico-discursiva. Você se lembra dessa discussão, apresentada em seções anteriores?
 
 
 
    Muitos autores discutem o papel da leitura em sala de aula e destacam a relevância de se estudar como as práticas de leitura têm sido conduzidas por professores: se no modelo tradicional, que solicita ler para responder questões objetivas sobre o texto ou destacar aspectos gramaticais, ou se no modelo interacionista, que solicita ler para pensar / atribuir sentidos / questionar / discutir o texto.
 
    Riolfi et al. (2010, p.45), pesquisadores preocupados com o ensino da língua portuguesa, iniciam uma reflexão sobre a leitura em sala de aula apresentando-nos uma pergunta:
 
Estamos, de fato, proporcionando aos alunos um acesso exploratório do texto que lhes permita ler com rigor ou nos limitamos a garantir-lhes o acesso à decodificação do texto?
 
    O que os autores querem dizer, na verdade, é que entre a tarefa de decodificar um texto e a de explorar seus significados e suas implicações sociais, há uma grande distância e a escola pode não estar se preocupando efetivamente com essa questão.
    O exemplo a seguir, destacado da obra dos autores citados (p.46), mostra-nos com clareza o que é a leitura para muitos alunos:
 
 
Um aluno, de 18 anos, lê a seguinte manchete em um jornal trazido pela professora para o trabalho de leitura:
 
SHEILA MELO E GUGU ENTERRAM FAUSTÃO
 
Bastante perplexo e entristecido, comenta com o colega ao lado: - Você viu? Mataram o Faustão!!!
 
 
 
Refletindo!
 
Vale a pena pensar: em que circunstâncias um aluno lê dessa forma? Que tipo de trabalho em sala de aula modificaria essa maneira de ler?
 
 
 
    Riolfi et al. (2010, p.46) consideram que a tarefa de modificar essa maneira de ler de muitos alunos “consiste, sobretudo, em levá-los a recuperar as pistas textuais que compõem a direção argumentativa do texto”.
    Na direção do exemplo apresentado acima, também podemos apontar o já discutido em seção anterior, Transcrição 4, que mostra um aluno, após a leitura de “O desgaste das palavras”, preocupado com exercícios de gramática a serem respondidos com base no texto. É possível pensar que naquela situação o aluno tenha trabalhado para analisar as pistas textuais, seu significado social, ou em que sentido o autor do texto apresenta seus argumentos?
 
 
Saiba Mais!
 
    Veja um projeto de leitura, realizado em uma escola de Foz do Iguaçu. Após assistir ao vídeo, você pode pensar em possibilidades para que os professores explorem a leitura realizada pelos alunos. Também gostaria que você pensasse nos aspectos desse projeto que colaborariam com a visão apresentada por Riolfi et al., sobre o papel da leitura. Experimente completar a tabela apresentada.
 
Vídeo “Leitura na Escola”. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=a5bnWLrz5K8> Acesso em: 12/04/2011.
 
 
Quadro VI: Caracterizando a proposta “Leitura na Escola”
 
Projeto de leitura proposto no vídeo
Projeto de leitura revisto, com suas sugestões
Qual é o papel do aluno?
 
 
 
 
Qual é o papel do professor?
 
 
 
 
Qual o papel do texto / da atividade?
 
 
 
 
 
 
 
    O que mais nos interessa nesta seção é entender como um professor pode trabalhar com propostas de leitura de modo a propiciar contextos para que os alunos avancem em sua forma de pensar e de compreender, por meio dos textos que circulam socialmente, o mundo que os cerca. Esse é nosso objetivo principal em relação à leitura.
    Nesse sentido, a tarefa mais relevante do professor é pensar as aulas de leitura como aulas planejadas e sistematizadas, ou seja, aulas em que o propósito primeiro é desenvolver a competência leitora no aluno. O que cabe perguntar é: qual tipo de intervenção o professor deve fazer e como essa aula deve ser conduzida?
    Veja as afirmações de Riolfi et al. (2010, p.49) sobre o que ocorre com a leitura:
 
De acordo com a distinção estabelecida (...) entre enxergar (apreender os contornos imagéticos de um objeto) e olhar (circunscrever um objeto no tempo e no espaço), reconhecemos que perceber o contorno das letras e o sentido isolado das palavras não é suficiente para a compreensão do texto. Os alunos, quando convidados a se manifestarem sobre um texto, acabam apresentando paráfrases ou ainda selecionam trechos dispersos sem um fio condutor.
 
O que podemos inferir daí é que muitas situações de leitura na escola focalizam o texto em si, isolado de seu contexto de produção e do contexto do aluno. Atividades com esse foco levam o aluno a fragmentar o trabalho com o texto, produzindo o que vemos muitas vezes: um resumo de texto que escolhe alguns parágrafos ou frases como mais relevantes, ou a separação das ideias contidas no texto justamente por desconhecimento da esfera social na qual circula esse texto e das implicações do gênero.
Geraldi (2006, p.92-9) destaca 4 posturas importantes que um leitor deve assumir perante um texto:
 
Leitura como busca de informações.
 
    Esse tipo de leitura corresponde ao seguinte objetivo do leitor: extrair informações do texto. Nesse sentido, a pergunta que cabe é: para que extrair informações de um texto? “Trata-se aqui de perguntar ao texto” (GERALDI, 1997, p.171).
    Geraldi comenta que em disciplinas como história, geografia, ciências, por exemplo, esse tipo de leitura é frequente e justificável para o aluno, pois existe claramente um “para quê” ler. Já em língua portuguesa – e podemos também acrescentar aqui em línguas estrangeiras – esse tipo de leitura pode não deixar claro para o aluno o “para quê” ler. Parece ao aluno que esse “para quê” é artificial no caso de textos em língua portuguesa ou línguas estrangeiras, uma vez que ele acredita que possa atribuir sentidos aos textos que lê. Tirar informações do texto (como o exemplo apresentado na Transcrição 4 – lembra-se?) parece esvaziar o trabalho de leitura e atribuir a ele uma importância menor dentro dos vários aspectos trabalhados na área da linguagem.
    Para o trabalho de leitura como busca de informações no texto, é possível recorrer a duas formas: partir de um roteiro de leitura, que pode ser elaborado pelo professor ou pelo próprio aluno, dependendo da clareza que tem sobre o objetivo de ler aquele texto; ou partir para a leitura sem um roteiro, destacando o que o aluno considera relevante, para futuras discussões sobre o texto.
    Ainda nessa direção de trabalho de leitura, Geraldi (1997) afirma que é possível extrair informações superficiais do texto ou extrair informações em nível mais profundo. Esse aspecto depende sempre dos conhecimentos do aluno sobre o tema proposto no texto e das atividades que antecedem a leitura propriamente dita, realizadas em sala de aula em momentos de investigação preliminar sobre o texto.
    Note que ao apontar a possibilidade dessas investigações preliminares, estamos afirmando que há, sim, a necessidade de o professor preparar os alunos para a leitura que farão. Um momento de brainstorming sobre o texto pode provocá-los, fazendo com que acionem o que já conhecem e, por meio da interação, relacionem aos posicionamentos de outros alunos da classe. O que afirmamos, na verdade, é que o momento de investigação inicial sobre um texto, provocado pelo professor, pode gerar uma ZPD (Lembra-se desse conceito vygotskyano?) que favoreça a articulação de ideias sobre o conteúdo do texto e possibilite aos alunos avançarem na maneira de ler.
 
Leitura para estudo do texto
 
    Para Geraldi (2006, p. 95), esse tipo de leitura pode concentrar-se em investigar: (a) a tese defendida no texto; (b) os argumentos apresentados em favor da tese defendida; (c) os contra-argumentos levantados em teses contrárias; (d) a coerência entre tese e argumentos. Nesse sentido, “posso ir ao texto para escutá-lo” (GERALDI, 1997, p.172).
    Esse tipo de leitura possibilita investigar a configuração do texto (como se organiza, quais os recursos linguísticos utilizados, qual o vocabulário utilizado, como é possível perceber a coerência do texto).
    Em aulas de Língua Portuguesa ou de línguas estrangeiras, esse tipo de leitura é muito comum e muitas vezes é o único utilizado em sala de aula. É uma pena pensar, por exemplo, que um texto literário ou um texto autêntico selecionado da mídia, sejam, muitas vezes, aproveitados em sala de aula apenas para esse tipo de leitura.
    Um exemplo de leitura para estudo do texto pode ser o que já apresentamos na seção sobre oralidade em sala de aula. Você se lembra? Na sequência didática elaborada pela professora, uma das etapas contemplava a leitura das transcrições de debates, com o propósito de levantar as características discursivas dos enunciados, pois os alunos estavam se preparando para assumir papéis em um debate e precisavam conhecer as manifestações linguísticas características desse gênero textual.
 
Leitura do texto como pretexto para outra atividade
 
Um texto proposto para leitura pode tanto ser um pretexto para que o professor introduza nova atividade, e nesse sentido, deveria funcionar como elemento motivacional, quanto pode ser um pretexto para se estudar a norma linguística. Veja que há uma grande diferença entre essas duas possibilidades. Enquanto a primeira pode ser um elemento para investigar conhecimentos prévios do aluno, seus conhecimentos de mundo ou a interação leitor-texto-autor, a segunda nos parece desconsiderar o contexto sócio-cultural ao qual o texto, o leitor e o autor pertencem.
Geraldi (1997, p.173) completa: “posso ir ao texto nem para perguntar-lhe nem para escutá-lo, mas para usá-lo na produção de outras obras, inclusive outros textos”.
Uma atividade interessante sobre a leitura como pretexto pode ser a que segue:
 
 
Atividade: O professor Márcio apresentou aos alunos de 2a série do Ensino Médio uma lista contendo títulos de poemas de autores brasileiros do período literário Romantismo, sugerindo que escolhessem alguns para ler, com o objetivo de encontrar características que os aproximassem e assim, pudessem estudar as características de tal período literário. A proposta de leitura teve por objetivo funcionar como um disparador para o estudo da corrente literária. A leitura não sugeria a discussão dos poemas em si, mas o que os aproximava. O professor esperava, com essa proposta, que os alunos destacassem tanto características linguísticas quando aspectos sociais e culturais presentes nos poemas, para depois, confrontar tais descobertas àquelas presentes nos estudos literários.
 
 
Leitura como ato de fruição
 
    Nessa perspectiva, a leitura é considerada como geradora de prazer. Cabem aí atividades que não “cobram” o preenchimento de fichas ou a resposta a instrumentos formais de avaliação. O aluno pode e deve ter garantido o espaço para a leitura por simples prazer, tendo possibilidades de escolher o que mais o interessa, discutir com pares que têm o mesmo interesse. “Posso ir ao texto sem perguntas previamente formuladas, sem querer escrutiná-lo por minha escuta, sem pretender usá-lo: despojado, mas carregado de história” (GERALDI, 1997, p.174).
Geraldi (2006) nos diz que esse tipo de leitura tem estado longe da sala de aula. Nela, o que mais se manifesta é a leitura dita “rendosa”, ou seja, o aluno precisa ler para cumprir com determinadas tarefas do tipo prova, pontos para nota, pesquisa.
 
 
 
Refletindo!
 
Que tipo de leitura você tem presenciado em seus momentos de estágio? Segundo seu ponto de vista, o que prevalece na sala de aula, em relação à leitura? Por que professores têm tanta preocupação em não atribuir nota à leitura? Como você pensa a avaliação para atividades de leitura?
 
 
 
    Um aspecto muito discutido por todos os pesquisadores envolvidos com o aprendizado da leitura diz respeito às maneiras utilizadas por um professor para planejar atividades de leitura para seus alunos. Destacamos aqui duas discussões relevantes sobre essa questão: uma delas, proposta por Riolfi et al. (2010, p.51-3), destacando o conceito de “leitura rigorosa”. A outra proposta, discutida por Solé (1998/2007), destaca o que deve ser feito “antes da leitura”, “durante a leitura” e “depois da leitura”. Reproduzimos, a seguir, essas propostas.
Para Riolfi et al. (2010, p.51-3), ler de modo rigoroso exige:
·         sucessivas operações de retroação (e para isso, o professor precisa planejar sequências didáticas que favoreçam esse “avançar – retroceder” em relação às questões suscitadas pelo texto);
·         recuperação das pistas interpretativas do texto (a partir dos elementos extratextuais e dos elementos presentes na linha de argumentação do texto);
·         desconstrução da aparência higienizada da superfície textual (a partir de observação minuciosa do texto).
 
Essas ações podem ser colocadas em prática quando:
 
·         o aluno leitor faz um exercício de desnaturalizar as condições de produção que deram origem ao texto, isto é, considera aspectos polissêmicos na interpretação do contexto de produção;
·         o aluno leitor toma o texto como elementos para reflexão, considerando tanto o próprio texto quanto seu modo de ler esse texto e dar consideração a ele;
·         o professor trabalha oferecendo meios para que os alunos alterem seus posicionamentos sobre o texto e ampliem seu repertório;
·         professor e alunos percebam a leitura como uma possibilidade de pesquisa sobre o texto e sobre a rede textual por ele revelada;
·         professor e alunos consideram o ato de ler um momento de questionar o texto, não permanecendo presos a pré-entendimentos.
 
    Em resumo, Riolfi et al. (op cit.) sugerem que no ato de ler, o leitor:
 
·         examine o texto no sentido de desmontá-lo;
·         desconstrua o texto para entender como ele foi tecido;
·         analise como as escolhas do autor (lexicais, estruturais, argumentativas etc.) interferem na trama do texto.
 
    Em relação às afirmações de Solé (1998/2007, p.89-161), podemos destacar o que é preciso para que o ato de ler se constitua, de fato, em compreensão e desenvolvimento do aluno. A autora afirma que há sempre um “antes da leitura”, um “durante a leitura” e um “depois da leitura”, e que esses momentos não podem ser entendidos como separados completamente, pois são interdependentes. Não há uma fronteira nítida entre eles. Vale a pensa entendermos como e porque são significativos para o avanço na competência leitora dos alunos.
 
Antes da leitura
 
    Nesse sentido, o primeiro aspecto indicado pela autora diz respeito à necessidade de exploração dos objetivos da leitura. Cabe aqui pensar em maneiras que o professor deve utilizar para explicitar aos alunos os objetivos para se ler este ou aquele texto ou livro. Da mesma forma como nos disse Geraldi, Solé afirma que lemos para obter informações precisas, para seguir instruções, para obter informações de caráter geral, para aprender algo, para revisar um escrito próprio, por prazer, para comunicar algo a uma plateia, para praticar leitura em voz alta, para verificar o que foi compreendido sobre um dado assunto.
    Também em relação ao que devemos fazer antes da leitura, cabe destacar o levantamento dos conhecimentos prévios e o estabelecimento de previsões sobre o texto a ser lido. Nesse sentido, o professor tem um papel fundamental, pois ele é o disparador dos questionamentos que fazem com que os alunos explicitem o que já sabem sobre o tema proposto. As perguntas do professor podem ser tão instigadoras ao ponto de gerarem motivação para a leitura do texto. Vejamos uma situação-exemplo de sala de aula.
Pensando em como um professor prepara sua aula para uma atividade correspondente ao “antes da leitura”, apresentamos a você parte de um plano de aula que focaliza exatamente esse momento da aula. Veja como o professor Sérgio preparou a discussão inicial sobre um livro escolhido para trabalhar com alunos de 2o ano do Ensino Médio.
 


Plano de aula[2]:
 
Escola de Ensino Fundamental e Médio Edgar Morin
Série: 2a     Ano: 2010                    Disciplina: Língua Portuguesa
Carga Horária Semanal: 5 h/a
Professor: Sérgio
 
Atividade: Leitura – momento “antes da leitura”
 
Descrição sumária da atividade: Será apresentada aos alunos a capa de um livro e alguns elementos do livro. Um brainstorming será realizado em aula, a fim de levantar possibilidades para o conteúdo do livro.
 
Objetivo[3] geral da atividade: compreender e atribuir sentidos ao texto, a partir de discussões sobre os significados estáveis que emergem das discussões em sala de aula e novas possibilidades de compreensão; ampliar a capacidade de argumentação a partir de discussões em grupo, mediadas por questionamentos.
 
Conteúdo proposto (destacar cada foco referente ao seu conteúdo, indicando também as possíveis subdivisões)
Objetivos específicos do conteúdo
Estratégias de ensino a serem utilizadas + recursos necessários (descrever estratégias a serem utilizadas; não é significativo escrever “jogo de memória”, mas sim, como o jogo será utilizado durante a aula e porque esse jogo foi escolhido, o que essa estratégia propicia, em termos de aprendizagem, ao aluno, em que sentido ela se relaciona aos objetivos...)
Procedimentos de avaliação (descrever os instrumentos a serem utilizados; tal descrição é mais relevante do que o valor que dará aos instrumentos, caso sejam revertidos em notas)
Momento inicial da apresentação do livro:
MIGUEL, Jorge. Caminhos errantes da liberdade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2007. (Coleção Passelivre)
 
Conteúdo[4] da atividade: levantamento de conhecimentos prévios sobre o tema proposto no livro, bem como sobre autor e gênero.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
- identificar elementos significativos da capa, quarta-capa e página de rosto do livro;
- relacionar elementos da capa, quarta-capa e página de rosto do livro às áreas do conhecimento;
- estabelecer previsões para o conteúdo que será tratado no livro;
- formular perguntas para serem respondidas à medida que a leitura transcorrer;
- selecionar e organizar argumentos sobre possíveis conteúdos do livro, a partir de agrupamento de ideias;
- investigar a relação entre autor, título do livro, possível audiência e área de interesse;
- levantar possibilidades para o conteúdo do livro a partir de discussão sobre o sumário apresentado.
- Apresentarei a imagem, apenas o título do livro aos alunos e iniciarei a discussão a partir de perguntas-guia que serão articuladas às perguntas que os próprios alunos apresentarem durante esse momento de investigação.
 
Veja o título deste livro: “Caminhos errantes da liberdade”. O que ele sugere a você? O que você acha que será tratado neste livro?
Se o título fosse “Caminhos da liberdade”, significaria para você o mesmo que “Caminhos errantes da liberdade”?
Qual significado você conhece para a palavra errante?
 
 
- Após levantados os sentidos iniciais, com base nessas perguntas e outras sugeridas pelos próprios alunos durante a interação, apresentarei a eles a imagem presente na capa do livro e novamente os provocarei com perguntas do tipo:
 
Agora, vendo a imagem da capa, o que você acredita que será tratado no livro?
Essa imagem pode ser uma metáfora em relação ao conteúdo do livro?
Que elementos podemos investigar para descobrir mais sobre a relação imagem – conteúdo do livro?
 
- Apresentarei em seguida o autor do livro: Jorge Miguel. Perguntarei se conhecem esse autor e como ele é pouco conhecido, apresentarei alguns elementos biográficos, como os que seguem:
 
Jorge Miguel é Diretor acadêmico do Departamento de Processo Seletivo da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP); é formado em Direito pelo Mackenzie. É procurador, professor universitário e poeta bissexto.
 
Perguntas orientadoras:
Agora que você já sabe um pouco sobre o autor, quais as hipóteses já apresentadas podem ser mantidas? Quais as que você acha que devem ser descartadas? Por quê?
Considerando a área de atuação desse autor, que novas hipóteses vocês acrescentariam às já apresentadas sobre o conteúdo do livro?
 
Apresentarei a frase que aparece na capa do livro: “A liberdade é uma forma de autonomia que se inicia quando o homem, ousadamente, vai em busca de sua individualidade”.
Caso os alunos ainda não tenham perguntado nada sobre “poeta bissexto”, apontarei essa informação como algo que pode ser relevante para descobrirmos o gênero ou os gêneros contidos no livro.
 
Perguntas orientadoras:
Em que sentido você acredita que o autor tratará a autonomia? Como autonomia é definida em suas aulas de filosofia e de sociologia?
O que você acha que pode significar “poeta bissexto”
Como vamos descobrir essa questão?
A partir dessa descoberta, o que muda em relação às hipóteses que você já levantou sobre o conteúdo do livro?
 
(...)
 
Apresentarei o texto da quarta-capa do livro:
“Os oito contos que compõem esta obra tratam dos muitos caminhos que a liberdade assume. Há em cada personagem um drama. Em cada narrativa, um valor desmorona. No horizonte de todo o livro, são retratadas as diversas faces da liberdade, via única para quem ousa abandonar a segurança de uma vida incompleta”.
 
Perguntas orientadoras:
Agora que você já sabe que o livro apresentará oito contos, é possível afirmar qual ou quais os gêneros presentes no livro? Por que sim? Por que não? A provocação tem como objetivo rediscutir o que é gênero e como ele permeia as obras da literatura.
 
(...)
 
- Apresentarei o índice do livro, para levantarmos, em grupo, hipóteses para os contos.
(...)
Para esta etapa do trabalho com leitura (momento “antes da leitura”, não utilizarei instrumentos formais do tipo prova ou relatório de atividade ou relato descritivo de ação. A avaliação se dará em relação às interações entre os alunos e à forma como argumentam a favor de seus pontos de vista. Para isso, procurarei preencher uma planilha enquanto trabalho com a turma, com os seguintes critérios:
- uso de operadores argumentativos apresentação dos pontos de vista
- tipos de argumentos utilizados (pragmático, por analogia, por exemplo, baseado em autoridade, baseado no consenso, baseado no raciocínio lógico)
- apresentação do argumento (estrutura do discurso, encadeamentos discursivos)
- apresentação de contra-argumentos
 
 
 


 
 
Saiba mais!
 
Para entender mais sobre como elaborar objetivos para aulas, sugiro que você leia o texto indicado, do professor Vilson Leffa, da Universidade Católica de Pelotas. Esse professor tem desenvolvido pesquisas sobre o ensino de línguas e sobre desenvolvimento de materiais didáticos:
 
LEFFA, Vilson. Como produzir materiais para o ensino de línguas. Disponível em: <http://www.leffa.pro.br/textos/trabalhos/prod_mat.pdf> Acesso em: 14/04/2011.
 
 
 
    Observemos agora uma atividade[5] também orientada aos conhecimentos prévios dos alunos, em aula de língua inglesa e note que essa atividade, embora considerada aqui como “atividade para antes da leitura”, desencadeia um momento de produção de texto. Ou seja, a atividade tem por objetivo principal despertar a motivação para a leitura de um livro, no entanto, trabalha com a produção de um texto.
 
 
Atividade: a professora Márcia selecionou um livro para ser lido por seus alunos de 7o ano do Ensino Fundamental:
 
MAGALHÃES, João de. Johnny’s First Kiss. São Paulo: Moderna, 2004. (Rechmond Publishing, Moderns Readers; stage 2 – elementary).
 
O livro escolhido pela professora era desconhecido dos alunos. Os temas envolvidos na história focalizada no livro tratam de: ética, amizade, sexualidade, autoconhecimento. Há interesse da professora em trabalhar interdisciplinarmente com a professora de Ciências[6]. A primeira tarefa foi preparar um conjunto de todas as imagens do livro. Cada imagem foi colocada em meia folha de papel A4, sem indicação da página do livro. Os alunos foram divididos em grupos de no máximo 5 elementos e cada grupo recebeu o conjunto de imagens. A tarefa inicial era observá-las e imaginar o que tratavam. Também como tarefa, os alunos foram orientados a selecionar 12 das 21 imagens e organizá-las na sequência que desejassem, pensando em uma história.
    Primeiras dúvidas dos alunos: Como saberiam qual o personagem principal da história? Como procederiam, caso descartassem exatamente as imagens mais importantes da história? O que aconteceria com as histórias de todos os grupos se as imagens escolhidas não fossem as mesmas?
 
 
 
 
Refletindo!
 
    O que você acha que estava acontecendo com os alunos nesse momento? O fato de serem, frequentemente, apresentados às leituras sempre como se elas fossem algo certo e acabado, inquestionável, levou-os a uma postura de insegurança frente à liberdade de escolher e, de certa forma, de “interferir” na história apresentada no livro que ainda nem conheciam.
 
 
    A segunda tarefa da professora consistiu em uma atividade de discussão sobre as imagens escolhidas em cada grupo e sobre as imagens descartadas. Interessante para a professora foi o fato de muitos grupos terem descartado imagens cujo vocabulário lhes era desconhecido. A atividade de discussão teve, portanto, foco no vocabulário e também na temática que parecia presente nas imagens, mesmo considerando as diferentes escolhas dos grupos.
    Para essa atividade, tanto a professora Márcia fazia perguntas aos alunos quanto eles perguntavam uns aos outros, solicitando explicações para suas escolhas. As intervenções da professora sugeriam às crianças que não havia uma história mais certa do que a outra, mas que todas as possibilidades poderiam ser consideradas.
Ao longo das discussões, surgiram também perguntas sobre como organizar uma determinada frase para a história e perguntas desse tipo mereceram da professora uma tabela na lousa, com destaques para os aspectos linguísticos que foram sendo apresentados pelos alunos. Como conteúdos linguísticos, o livro oferecia destaque para: simple present, present continuous, future with will, modal verbs, simple comparatives, sentences joined with and but, occasional use of first conditional. Ao longo das discussões com os alunos e mediante suas solicitações, a professora trazia para a tabela exemplos de uso da língua em relação aos itens do conteúdo linguístico, recordando as estruturas já aprendidas.
    As perguntas dos próprios alunos aos colegas mostravam para a professora Márcia e para eles próprios seus conhecimentos prévios sobre o tema discutido e também sobre os conhecimentos linguísticos já dominados.
    Após essa atividade, os alunos elaboraram suas histórias. Utilizaram 4 aulas para realizar a tarefa, sempre trabalhando em grupo, com a orientação da professora, que sugeria pequenas correções nos textos ou modificações no sentido de torná-los mais coesos e coerentes. As histórias elaboradas se caracterizaram pela tipologia textual narrativa, com um ou dois parágrafos para cada uma das imagens escolhidas pelo grupo. Ao término, houve uma troca de histórias entre os grupos. Durante uma semana, cada grupo se incumbiu de ler pelo menos três histórias elaboradas por colegas.
    Essa atividade gerou um movimento inquietante na turma, uma vez que foram se deparando com diferentes histórias, diferentes personagens principais, tramas e desfechos inusitados. A grande questão agora era: qual a “verdadeira” história?
    Após essa etapa, a professora ainda realizou uma atividade oral de discussão sobre o livro, com questionamentos sobre a imagem da capa, sobre o título e a sequência de imagens, a fim de provocar os alunos para que comparassem o que viam no livro às histórias que haviam elaborado.
    O que apresentamos até aqui, sobre a aula da professora Márcia, ilustra a forma como, didaticamente, ela abordou o momento inicial da leitura, procurando despertar nos alunos a curiosidade em relação ao livro proposto. A partir daí, podemos avançar na discussão de Solé (1998/2007 sobre como a autora sugere o que deve ser feito durante a leitura. Vejamos em que sentido isso pode ser planejado pelo professor.
 
Durante a leitura
 
    Solé (1998/2007) sugere que a leitura seja compartilhada em diferentes momentos em sala de aula e que sejam, durante todo o tempo, recuperadas as previsões feitas para o texto, para que sejam confrontadas com o que se encontra efetivamente nele. Sugere ainda que sejam feitas perguntas sobre o que está sendo lido, que provocam o movimento de ir e vir na trama textual; que possíveis dúvidas sobre o texto sejam discutidas e que também se construa, ao longo da leitura, um resumo das ideias principais apresentadas no texto.
    Interessante observar que esse momento durante a leitura pode ser assumido tanto pelo professor quanto pelos alunos. Ambos podem colaborar com perguntas e com a organização de tarefas sobre o que está sendo lido. Todo esse movimento investigativo sobre o texto tem por objetivo as ações de ler, resumir, solicitar esclarecimentos, prever sobre o texto.
    Solé destaca um importante aspecto relacionado a esse tipo de leitura, por ela denominado “leitura compartilhada”. Para a autora, leitura compartilhada não é o mesmo que leitura dirigida. Nessa perspectiva, o professor tem o controle da leitura e indica aos alunos o que devem fazer, o que deve ser questionado.
A perspectiva da leitura compartilhada traz para o aluno parte da responsabilidade nas tarefas: ele tanto responde a questionamentos e proposições de seu professor quanto apresenta questionamentos aos colegas e propõe discussões. Numa perspectiva dialógica para a atividade de leitura, o que não se quer é que os alunos trabalhem passivamente sobre um texto, mas que internalizem as diferentes discussões assumindo-as para si, no sentido de mais eficazmente compreenderem o texto.
 
Depois da leitura
 
    Após a leitura, alguns procedimentos são fundamentais para que o aluno compreenda porque leu, seja capaz de avaliar seu próprio desenvolvimento em relação à competência leitura. O primeiro aspecto destacado por Solé (1998/2007) diz respeito à ideia principal do texto. A autora destaca a complexidade de se compreender o que é a ideia principal de um texto, aponta inúmeros autores que têm discutido essa questão, e apresenta seu ponto de vista sobre o trabalho realizado ao ensinar ao aluno onde está a ideia principal de um dado texto.
    Dentre as discussões apresentadas, uma merece destaque e parece-nos esclarecedora: podemos pensar no tema sobre o qual um dado texto discute e também na ideia principal discutida pelo autor. Segundo Solé (1998/2007, p.135), esses dois aspectos não seriam sinônimos. O primeiro, o tema, pode ser expresso por uma única palavra ou um sintagma, e pode ser encontrado quando buscamos resposta à pergunta: de que trata esse texto? A ideia principal corresponde àquilo que o autor considera mais importante para explicar o tema e pode ser encontrada quando buscamos resposta à pergunta: qual é a ideia mais importante que o autor pretende explicar com relação ao tema?
    Para que os alunos compreendam como encontrar a ideia principal de um texto, é preciso usar procedimentos investigativos como:
 
·         sugerir que os alunos falem sobre o que leram e enquanto isso, caso a ideia principal fique obscurecida, o professor pode apresentar questionamentos que provoquem o surgimento da ideia;
·         relacionar os objetivos da leitura ao tema que surge como focal em relação ao texto;
·         discutir, ao final, qual o caminho percorrido para se chegar à ideia principal.
 
    Outro aspecto discutido por Solé sobre o que acontece “depois da leitura” diz respeito à possibilidade de se resumir o que foi lido. Para isso, afirma a autora que também há procedimentos específicos a serem utilizados juntamente com o professor, se este quiser, de fato, ensinar aos seus alunos como se resume.
    Também um tipo de atividade utilizada “depois da leitura” que muito favorece a compreensão do aluno sobre o que leu, é o trabalho com a formulação de perguntas sobre o que foi lido. Alunos organizam, assim, perguntas cujas respostas provocam a discussão sobre o texto. Isso permite ao professor perceber o que foi aprendido, com que profundidade foi aprendido, que tipo de relações interdisciplinares os alunos estão conseguindo fazer após a leitura, como estabelecem pontos de vista mais, ou menos, críticos em relação ao que leram.
 
 
 
Saiba mais!
 
Veja como a leitura transforma o ser homem! Como sugestão, assista ao filme “O Carteiro e o Poeta”.
 
O CARTEIRO e o poeta. (Il Postino). Direção: Michael Radford. Itália: 1994. (109 min.).
 
Sugiro que você faça um exercício seguindo as orientações com as quais trabalhamos nesta seção: antes de “ler-assistir” ao filme, registre suas impressões iniciais, o que você pressupõe encontrar no filme. Durante o “ler-assistir” ao filme, registre todas as possíveis perguntas que faria a alguém com quem compartilhasse essa leitura. Após “ler-assistir” ao filme, destaque o tema, a ideia principal, assim como busque relacionar tudo o que viu/ouviu aos conhecimentos que você tem sobre as diferentes áreas que o filme suscita em você.
 
 
 
    Concluímos esta seção apresentando algumas questões para você refletir:
 
·         Nos estágios realizados ao longo do curso de Letras, quais práticas de leitura você pôde observar?
·         A quais concepções de leitura essas práticas estão relacionadas?
·         Que tipo de leitura paradidática você observou?
·         De que maneira os professores procedem para escolher leituras para seus alunos?
·         Todas as leituras propostas são escolhas do professor?
·         Quais as competências desenvolvidas nas atividades de leitura que você presenciou em seus estágios?
·         Como o professor organizava procedimentos de leitura para apresentar textos clássicos aos alunos?
 
 
Saiba Mais!
 
            Veja que há muitas questões que um professor de língua portuguesa ou de línguas estrangeiras deve pensar quando o foco é o desenvolvimento da competência leitora de seus alunos, não é mesmo? E como sei que você tem um laço afetivo imenso com a leitura, sugiro, a título de instigá-lo ainda mais em direção a esse tema, que leia o livro abaixo:
 
PENNAC, D. Como um Romance. Trad. Leny Werneck. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
 
            Vendo a capa e a quarta-capa desse livro[7], quem sabe você sinta-se envolvido e motivado a essa leitura...
 



 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 


[1] Tradução: Leia, não para contradizer e refutar, nem para acreditar e tomar como certo, nem para achar assunto e conversa, mas para pensar e considerar.
[2] Plano de aula fictício, elaborado para fins didáticos pela autora da apostila.
[3] Leia as indicações sobre objetivos, propostas por Leffa (2003): Para os objetivos gerais usam-se geralmente verbos que denotam comportamentos não diretamente observáveis. Entre esses verbos, os seguintes têm sido usados com mais frequência: saber, compreender, interpretar, aplicar, analisar, integrar, julgar, aceitar, apreciar, criar, etc.
* Para os objetivos específicos, usam-se verbos de ação, envolvendo comportamentos que podem ser diretamente observados. Entre eles, destacam-se: identificar, definir, nomear, relacionar, destacar, afirmar, distinguir, escrever, recitar, selecionar, combinar, localizar, usar, responder, detectar, etc.
* Verbos que denotam processo - aprender, desenvolver, memorizar, adquirir, etc. - não podem ser usados para elaborar objetivos educacionais; eles não descrevem o resultado da aprendizagem.
 
[4] Os elementos utilizados nesta atividade são apresentados a você no Anexo 2.
[5] Atividade elaborada pela autora da apostila, para fins didáticos em cursos de formação de professores.
[6] Informações disponíveis em <http://www.richmond.com.br/catalogo/readers/modern-readers/johnny’s-first-kiss/> Acesso em: 10/04/2011. Resumo da história: Johnny acaba de se mudar e precisa se familiarizar com um bairro novo, uma escola nova, amigos novos; além disso, a garota mais bonita da escola quer conhecê-lo. Para se enturmar, Johnny tem que repensar todas as coisas em que acredita. Nessa história, o leitor é convidado a acompanhar a busca de Johnny por sua identidade, um tipo de viagem que todo jovem precisa fazer um dia.
[7] A capa do referido livro encontra-se disponível em: <http://blog.opovo.com.br/sincronicidade/por-amor-a-leitura/> Acesso em: 30/05/2011.