domingo, 20 de maio de 2012

Alguns resumos das princípias obras de José Saramago.

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA (1995)
(...) O médico perguntou-lhe, Nunca lhe tinha acontecido antes, quero dizer, o mesmo de agora, ou parecido, Nunca, senhor doutor, eu nem sequer uso óculos, E diz-me que foi de repente, Sim, senhor doutor, Como uma luz que se apaga, Mais como uma luz que se acende, Nestes últimos dias tinha sentido alguma diferença na vista, Não, senhor doutor, Há, ou houve, algum caso de cegueira na sua família, Nos parentes que conheci ou de quem ouvi falar, nenhum, Sofre de diabetes, Não, senhor doutor, De sífilis, Não, senhor doutor, De hipertensão arterial ou intracraniana, Da intracraniana não sei, do mais sei que não sofro, lá na empresa fazem-nos inspecções, Deu alguma pancada violenta na cabeça, hoje ou ontem, Não, senhor doutor, Quantos anos tem, Trinta e oito, Bom, vamos lá então observar esses olhos. O cego abriu-os muito, como para facilitar o exame, mas o médico tomou-o por um braço e foi instalá-lo por trás de um aparelho que alguém com imaginação poderia ver como um novo modelo de confessionário, em que os olhos tivessem substituído as palavras, com o confessor a olhar directamente para dentro da alma do pecador, Apoie aqui o queixo, recomendou, mantenha os olhos abertos, não se mexa. A mulher aproximou-se do marido, pôs-lhe a mão no ombro, disse, Verás como tudo se irá resolver. O médico subiu e baixou o sistema binocular do seu lado, fez girar parafusos de passo finíssimo, e principiou o exame. Não encontrou nada na córnea, nada na esclerótica, nada na íris, nada na retina, nada no cristalino, nada na mácula lútea, nada no nervo óptico, nada em parte alguma. Afastou-se do aparelho, esfregou os olhos, depois recomeçou o exame desde o princípio, sem falar, e quando outra vez terminou tinha na cara uma expressão perplexa, Não lhe encontro qualquer lesão, os seus olhos estão perfeitos. A mulher juntou as mãos num gesto de alegria e exclamou, Eu bem te tinha dito, eu bem te tinha dito, tudo se ia resolver. Sem lhe dar atenção, o cego perguntou, Já posso tirar o queixo, senhor doutor, Claro que sim, desculpe, Se os meus olhos estão perfeitos, como diz, então por que estou eu cego, Por enquanto não lhe sei dizer, vamos ter de fazer exames mais minuciosos, análises, ecografia, encefalograma, Acha que tem alguma coisa a ver com o cérebro, É uma possibilidade, mas não creio, No entanto o senhor doutor diz que não encontra nada de mau nos meus olhos, Assim é, Não percebo, O que quero dizer é que se o senhor está de facto cego, a sua cegueira, neste momento, é inexplicável, Duvida que eu esteja cego, Que ideia, o problema está na raridade do caso, pessoalmente, em toda a minha vida de médico, nunca me apareceu nada assim, e atrevo-me mesmo a dizer que em toda a história da oftalmologia, Acha que tenho cura, Em princípio, porque não lhe encontro lesões de qualquer tipo nem malformações congé-nitas, a minha resposta deveria ser afirmativa, Mas pelos vistos não o é, Só por cautela, só porque não quero dar-lhe esperanças que depois venham a mostrar-se sem fundamento, Compreendo, Pois é, E deverei seguir algum tratamento, tomar algum remédio, Por enquanto não lhe receitarei nada, seria estar a receitar às cegas, Aí está uma expressão apropriada, observou o cego. O médico fez que não ouvira, afastou-se do banco giratório em que se tinha sentado para a observação, e, mesmo de pé, escreveu numa folha de receita os exames e análises que considerava necessários. Entregou o papel à mulher, Aqui tem, minha senhora, volte cá com o seu marido quando tiver os resultados, se entretanto houver alguma modificação no estado dele, telefone-me, A consulta, senhor doutor, Paga à empregada da recepção. Acompanhou-os à porta, balbuciou uma frase de confiança, do género Vamos a ver, vamos a ver, é preciso não desesperar, e quando se encontrou de novo só entrou no pequeno quarto de banho anexo e ficou a olhar-se no espelho durante um longo minuto, Que será isto, murmurou. Depois regressou ao gabinete, chamou a empregada, Mande entrar o seguinte. Nessa noite o cego sonhou que estava cego."


O EVANGELHO SEGUNDO JESUS CRISTO (1991)
"(...) Ora, este José de Arimateia é aquele bondoso e abastado homem que ofereceu os préstimos de um túmulo seu para nele ser depositado o corpo principal, mas a generosidade não lhe servirá de muito na hora das santificações, sequer das beatificações, pois não tem, a envolver-lhe a cabeça, mais do que o turbante com que sai à rua todos os dias, ao contrário desta mulher que aqui vemos em plano próximo, de cabelos soltos sobre o dorso curvo e dobrado, mas toucada com a glória suprema duma auréola, no seu caso recortada como um bordado doméstico. De certeza que a mulher ajoelhada se chama Maria, pois de antemão sabíamos que todas quantas aqui vieram juntar-se usam esse nome, apenas uma delas, por ser ademais Madalena, se distingue onomasticamente das outras, ora, qualquer observador, se conhecedor bastante dos factos elementares da vida, jurará, à primeira vista, que a mencionada Madalena é esta precisamente, porquanto só uma pessoa como ela, de dissoluto passado, teria ousado apresentar-se, na hora trágica, com um decote tão aberto, e um corpete de tal maneira justo que lhe faz subir e altear a redondez dos seios, razão por que, inevitavelmente, está atraindo e retendo a mirada sôfrega dos homens que passam, com grave dano das almas, assim arrastadas à perdição pelo infame corpo. É, porém, de compungida tristeza a expressão do seu rosto, e o abandono do corpo não exprime senão a dor de uma alma, é certo que escondida por carnes tentadoras, mas que é nosso dever ter em conta, falamos da alma, claro está, esta mulher poderia até estar inteiramente nua, se em tal preparo tivessem escolhido representá-la, que ainda assim haveríamos de demonstrar-lhe respeito e homenagem. Maria Madalena, se ela é, ampara, e parece que vai beijar, num gesto de compaixão intraduzível por palavras, a mão doutra mulher, esta sim, caída por terra, como desamparada de forças ou ferida de morte. O seu nome também é Maria, segunda na ordem de apresentação, mas, sem dúvida, primeiríssima na importância, se algo significa o lugar central que ocupa na região inferior da composição. Tirando o rosto lacrimoso e as mãos desfalecidas, nada se lhe alcança a ver do corpo, coberto pelas pregas múltiplas do manto e da túnica, cingida na cintura por um cordão cuja aspereza se adivinha (...)"


A VIAGEM DO ELEFANTE (2008)
(...) O presente que demos ao primo maximiliano, quando do seu casamento, há quatro anos, sempre me pareceu indigno da sua linhagem e merecimentos, e agora que o temos aqui tão perto, em valladolid, como regente de espanha, por assim dizer à mão de semear, gostaria de lhe oferecer algo mais valioso, algo que desse nas vistas, a vós que vos parece, senhora, Uma custódia estaria bem, senhor, tenho observado que, talvez pela virtude conjunta do seu valor material com o seu significado espiritual, uma custódia é sempre bem acolhida pelo obsequiado, A nossa santa igreja não apreciaria tal liberalidade, ainda há--de ter presentes em sua infalível memória as confessas simpatias do primo maximiliano pela reforma dos protestantes luteranos, luteranos ou calvinistas, nunca soube ao certo, Vade retro, satanás, nem em tal tinha pensado, exclamou a rainha, benzendo-se, amanhã terei de me confessar à primeira hora, Porquê amanhã em particular, senhora, se é vosso costume confessar-vos todos os dias, perguntou o rei, Pela nefanda ideia que o inimigo me pôs nas cordas da voz, olhai que ainda sinto a garganta queimada como se por ela tivesse roçado o bafo do inferno. Habituado aos exageros sensoriais da rainha, o rei encolheu os ombros e regressou à espinhosa tarefa de descobrir um presente capaz de satisfazer o arquiduque maximiliano de áustria. A rainha bisbilhava uma oração, principiara já outra, quando de repente se interrompeu e quase gritou, Temos o salomão, Quê, perguntou o rei, perplexo, sem perceber a intempestiva invocação ao rei de judá, Sim, senhor, salomão, o elefante, E para que quero eu aqui o elefante, perguntou o rei já algo abespinhado, Para o presente, senhor, para o presente de casamento, respondeu a rainha, pondo-se de pé, eufórica, excitadíssima, Não é presente de casamento, Dá o mesmo. O rei acenou com a cabeça lentamente três vezes seguidas, fez uma pausa e acenou outras três vezes, ao fim das quais admitiu, Parece-me uma ideia interessante, É mais do que interessante, é uma ideia boa, é uma ideia excelente, retrucou a rainha com um gesto de impaciência, quase de insubordinação, que não foi capaz de reprimir, há mais de dois anos que esse animal veio da índia, e desde então não tem feito outra coisa que não seja comer e dormir, a dorna da água sempre cheia, forragens aos montões, é como se estivéssemos a sustentar uma besta à argola, e sem esperança de pago (...)"


A JANGADA DE PEDRA (1988)
"(...) Em Paris riram-se muito das súplicas do maire, que parecia estar a telefonar de um canil à hora de ir servir-se o almoço dos cães, e só a instantes rogos de um deputado da maioria, na comuna nascido e criado, portanto conhecedor das lendas e narrativas locais, é que acabaram por ser despachados para o sul dois veterinários qualificados do Deuxième Bureau, com a especial missão de estudarem o fenómeno insólito e apresentarem relatório e propostas de acção. Entretanto, desesperados, no limiar da surdez, os habitantes tinham espalhado pelas ruas e praças da aprazível estância balnear, agora estação infernal, dúzias de bolos de carne envenenados, método de simplicidade suprema, cuja eficácia tem sido confirmada pela experiência em todos os tempos e latitudes. Por junto, não morreu mais que um cão, mas a lição foi logo aprendida pelos sobreviventes, que, em um instante, latindo ladrando e uivando, se sumiram nos campos arredor, onde, sem motivo que se percebesse, em poucos minutos se calaram. Quando os veterinários enfim chegaram foi-lhes apresentado o triste Médor, frio, inchado, tão diferente do feliz animal que acompanhava a dona às compras, e que, por ser já velho, gostava de dormir ao sol, sem cuidados. Porém, como a justiça ainda não abandonou por completo este mundo, decidiu Deus, poeticamente, que Médor morresse do bolo preparado pela dona bem-amada, a qual, bom é que se saiba, tinha no pensamento uma certa cadela da vizinhança que não lhe saía do jardim. O mais velho dos veterinários, diante do fúnebre despojo, disse, Vamos autopsiar, e realmente não valia a pena, porquanto qualquer habitante de Cerbère poderia, se o quisesse, testemunhar a causa mortis, mas o fito oculto da Faculdade, como na gíria do serviço secreto lhe chamavam, era proceder, disfarçadamente, ao exame das cordas vocais de um bicho que, entre a mudez por morte agora definitiva e o silêncio que parecera ser para toda a vida, tivera afinal umas horas de fala e pudera ser igual ao comum dos cães. (...)"



CAIM (2009)
"(...) Quando o senhor, também conhecido como deus, se apercebeu de que a adão e eva, perfeitos em tudo o que apresentavam à vista, não lhes saía uma palavra da boca nem emitiam ao menos um simples som primário que fosse, teve de ficar irritado consigo mesmo, uma vez que não havia mais ninguém no jardim do éden a quem pudesse responsabilizar pela gravíssima falta, quando os outros animais, produtos, todos eles, tal como os dois humanos, do faça-se divino, uns por meio de mugidos e rugidos, outros por roncos, chilreios, assobios e cacarejos, desfrutavam já de voz própria. Num acesso de ira, surpreendente em quem tudo poderia ter solucionado com outro rápido fiat, correu para o casal e, um após outro, sem contemplações, sem meias-medidas, enfiou-lhes a língua pela garganta abaixo. Dos escritos em que, ao longo dos tempos, vieram sendo consignados um pouco ao acaso os acontecimentos destas remotas épocas, quer de possível certificação canónica futura ou fruto de imaginações apócrifas e irremediavelmente heréticas, não se aclara a dúvida sobre que língua terá sido aquela, se o músculo flexível e húmido que se mexe e remexe na cavidade bucal e às vezes fora dela, ou a fala, também chamada idioma, de que o senhor lamentavelmente se havia esquecido e que ignoramos qual fosse, uma vez que dela não ficou o menor vestígio, nem ao menos um coração gravado na casca de uma árvore com uma legenda sentimental, qualquer coisa no género amo-te, eva. (...)


Fonte:http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2010/06/leia-trechos-de-algumas-das-principais-obras-de-jose-saramago.html último acesso:21-05-2012, 13:24

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