Vimos
até agora que o pensamento sociológico, em seu desenvolvimento, abordou níveis
diferentes da realidade. Sabemos que, se iluminarmos uma mesa cheia de objetos
com luzes de diferentes cores, partindo de diversos focos, estaremos produzindo
imagens distintas dos mesmos objetos. Nenhuma delas, entretanto, é
desnecessária ou incorreta. Cada uma delas "põe à luz" ou privilegia
determinados aspectos. Assim também acontece com as teorias científicas e,
entre elas, as sociais.
O
método positivista expôs ao pensamento humano a idéia de que uma sociedade é
mais do que a soma de indivíduos, que há normas, instituições e valores
estabelecidos que constituem o social. Weber, por sua vez, reorganizou os fatos
sociais "à luz" da história e da subjetividade do agente social.
Agora
falaremos de Kar! Marx e do materialismo histórico, a corrente mais
revolucionária do pensamento social nas conseqüências teóricas e na prática
social que propõe. É também um dos pensamentos mais difíceis de compreender,
explicar ou sintetizar, pois Marx produziu muito, suas idéias se desdobraram em
várias correntes e foram incorporadas por inúmeros teóricos.
Com
o objetivo de entender o capitalismo, Marx produziu obras de filosofia,
economia e sociologia. Sua intenção, porém, não era apenas contribuir para o
desenvolvimento da ciência, mas propor uma ampla transformação política, econômica
e social. Sua obra máxima, O capital, destinava-se a todos os homens,
não apenas aos estudiosos da economia, da política e da sociedade.
Este
é um aspecto singular da teoria de Marx. Há um alcance mais amplo nas suas formulações,
que adquiriram dimensões de ideal revolucionário e ação política efetiva. As
contradições básicas da sociedade capitalista e as possibilidades de superação
apontadas pela obra de Marx não puderam, pois, permanecer ignoradas pela
sociologia.
Podemos
apontar algumas influências básicas no desenvolvimento do pensamento de Marx.
Em primeiro lugar, coloca-se a leitura crítica da filosofia de Hegel, de quem
Marx absorveu e aplicou, de modo peculiar, o método dialético. Também
significativo foi seu contato com o pensamento socialista francês e inglês do
século XIX, de Claude Henri de Rouvroy, ou conde de Saint-Simon (1760-1825),
François-Charles Fourier (1772-1837) e Robert Owen (1771-1858). Marx destacava
o pioneirismo desses críticos da sociedade burguesa, mas reprovava o
"utopismo" das suas propostas de mudança social. As três teorias
desenvolvidas tinham como traço comum o desejo de impor de uma só vez uma
transformação social total, implantando,
assim,
o império da razão e da justiça eterna. Nos três sistemas elaborados havia a
eliminação do individualismo, da competição e da influência da propriedade privada.
Tratava-se, por isso, de descobrir um sistema novo e perfeito de ordem social,
vindo de fora, para implantá-Io na sociedade, por meio da propaganda e, sendo
possível, com o exemplo, mediante experiências que servissem de modelo. Com
esta formulação, os três desconsideravam a necessidade da luta política entre
as classes sociais e o papel revolucionário do proletariado na realização dessa
transição.
Finalmente,
há toda a crítica da obra dos economistas clássicos ingleses, em particular
Adam Smith e David Ricardo. Esse trabalho tomou a atenção de Marx até o final
da vida e resultou na maior parte de sua obra teórica. Essa trajetória é
marcada pelo desenvolvimento de conceitos importantes como alienação, classes
sociais, valor, mercadoria, trabalho, mais-valia, modo de produção. Vamos
examiná-Ios a seguir.
A idéia de alienação
Marx
desenvolve o conceito de alienação mostrando que a industrialização, a
propriedade privada e o assalariamento separavam o trabalhador dos meios de
produção - ferramentas, matéria-prima, terra e máquina -, que se tomaram
propriedade privada do capitalista. Separava também, ou alienava, o trabalhador
do fruto do seu trabalho, que também é apropriado pelo capitalista.
Essa
é a base da alienação econômica do homem sob o capital. Politicamente, também o
homem se tomou alienado, pois o princípio da representatiuidade, base do
liberalismo, criou a idéia de Estado como um órgão político imparcial, capaz de
representar toda a sociedade e dirigi-Ia pelo poder delegado pelos indivíduos.
Marx mostrou, entretanto, que na sociedade de classes esse Estado representa
apenas a classe dominante e age conforme o interesse desta.
Com
o desenvolvimento do capitalismo, a filosofia, por sua vez, também passou a
criar representações do homem e da sociedade. Diz Marx que a divisão social
do trabalho fez com que a filosofia se tomasse a atividade de um
determinado grupo. Ela é, portanto, parcial e reflete o pensamento desse grupo.
Essa parcialidade e o fato de que o Estado se toma legítimo a partir dessas
reflexões parciais - como, por exemplo, o liberalismo - transformaram a
filosofia em "filosofia do Estado". Esse comportamento do filósofo e
do cientista em face do poder resultou também na alienação do homem.
Uma
vez alienado, separado e mutilado, o homem só pode recuperar sua condição
humana pela crítica radical ao sistema econômico, à política e à filosofia que
o excluíram da participação efetiva na vida social. Essa crítica radical só se
efetiva na práxis, que é a ação política consciente e transformadora.
Com
base nesse princípio, os marxistas vinculam a crítica da sociedade à ação
política. Marx propôs não apenas um novo método de abordar e explicar a
sociedade mas também um projeto para a ação sobre ela. As idéias liberais
consideravam os homens, por natureza, iguais política e juridicamente.
Liberdade e justiça eram direitos inalienáveis de todo cidadão.
Marx,
por sua vez, proclama a inexistência de tal igualdade natural e observa que o
liberalismo vê os homens como átomos, como se estivessem livres das evidentes
desigualdades estabelecidas pela sociedade. Segundo Marx, as desigualdades
sociais observadas no seu tempo eram provocadas pelas relações de produção do
sistema capitalista, que dividem os homens em proprietários e não-proprietários
dos meios de produção. As desigualdades são a base da formação das classes
sociais. As relações entre os homens se caracterizam por relações de oposição, antagonismo,
exploração e complementaridade entre as classes sociais.
Marx
identificou relações de exploração da classe dos proprietários - a burguesia -
sobre a dos trabalhadores - o proletariado. Isso porque a posse dos meios de
produção, sob a forma legal de propriedade privada, faz com que os
trabalhadores, a fim de assegurar a sobrevivência, tenham de vender suaforça
de trabalho ao empresário capitalista, o qual se apropria do produto do
trabalho de seus operários.
Essas
mesmas relações são também de oposição e antagonismo, na medida em que os
interesses de classe são inconciliáveis. O capitalista deseja preservar seu
direito à propriedade dos meios de produção e dos produtos e à máxima
exploração do trabalho do operário, seja reduzindo os salários, seja ampliando
a jornada de trabalho. O trabalhador, por sua vez, procura diminuir a
exploração ao lutar por menor jornada de trabalho, melhores salários e
participação nos lucros.
Por
outro lado, as relações entre as classes são complementares, pois uma só existe
em relação à outra. Só existem proprietários porque há uma massa de
despossuídos cuja única propriedade é sua força de trabalho, que precisam
vender para assegurar a sobrevivência. As classes sociais são, pois, apesar de
sua oposição intrínseca, complementares e interdependentes. A história do homem
é, segundo Marx, a história da luta de classes, da luta constante entre
interesses opostos, embora esse conflito nem sempre se manifeste socialmente
sob a forma de guerra declarada. As divergências, oposições e antagonismos de
classes estão subjacentes a toda relação social, nos mais diversos níveis da
sociedade, em todos os tempos, desde o surgimento da propriedade privada.
A origem histórica do capitalismo
O
capitalismo surge na história quando, por circunstâncias diversas, uma enorme
quantidade de riquezas se concentra nas mãos de uns poucos indivíduos, que têm
por objetivo a acumulação de lucros cada vez maiores.
No
início, a acumulação de riquezas se fez por meio da pirataria, do roubo, dos
monopólios e do controle de preços praticados pelos Estados absolutistas. A
comercialização era a grande fonte de rendimentos para os Estados e a nascente
burguesia. Uma importante mudança aconteceu quando, a partir do século XVI, o
artesão e as corporações de ofício foram substituídas, respectivamente, pelo
trabalhador "livre" assalariado - o operário - e pela indústria.
Na
produção artesanal da Idade Média e do Renascimento, o trabalhador mantinha em
sua casa os instrumentos de produção. Aos poucos, porém, estes passaram às mãos
de indivíduos enriquecidos, que organizaram oficinas. A Revolução Industrial
introduziu inovações técnicas na produção que aceleraram o processo de
separação entre o trabalhador e os instrumentos de produção. As máquinas e tudo
o mais necessário ao processo produtivo – força motriz, instalações,
matérias-primas – ficaram acessíveis somente aos mais ricos. Os artesãos,
isolados, não podiam competir com o dinamismo dessas nascentes indústrias e do
conseqüente crescimento do mercado. Com isso, multiplicou-se o número de
operários, isto é, trabalhadores "livres" expropriados, artesãos que
desistiam da produção individual e empregavam-se nas indústrias.
o salário
o
operário, como vimos, é aquele indivíduo que, nada possuindo, é obrigado a
sobreviver da venda de sua força de trabalho. No capitalismo, a força de
trabalho se toma uma mercadoria, algo útil, que se pode comprar e vender. Surge
assim um contrato entre capitalista e operário, mediante o qual o primeiro
compra ou "aluga por um certo tempo" a força de trabalho e, em troca,
paga ao operário uma quantia em dinheiro, o salário.
O
salário é, assim, o valor da força de trabalho, considerada como mercadoria. Como
a força de trabalho não é uma "coisa", mas uma capacidade, inseparável
do corpo do operário, o salário deve corresponder à quantia que permita ao
operário alimentar-se, vestir-se, cuidar dos filhos, recuperar as energias e,
assim, estar de volta ao serviço no dia seguinte. Em outras palavras, o salário
deve garantir a reprodução das condições de subsistência do trabalhador e sua
família.
O
cálculo do salário depende do preço dos bens necessários à subsistência do
trabalhador. O tipo de bens necessários depende, por sua vez, dos hábitos e dos
costumes dos trabalhadores. Isso faz com que o salário varie de lugar para
lugar. Além disso, o salário depende ainda da natureza do trabalho e da
destreza e da habilidade do próprio trabalhador. No cálculo do salário de um
operário qualificado deve-se computar o tempo que ele gastou com educação e
treinamento para desenvolver suas capacidades.
Trabalho,
valor e lucro
o
capitalismo, segundo o marxismo, transformou o trabalho em mercadoria. o
capitalismo vê a força de trabalho como mercadoria, mas é claro que não se trata
de uma mercadoria qualquer. Enquanto os produtos, ao serem usados, simplesmente
se desgastam ou desaparecem, o uso da força de trabalho significa, ao
contrário, criação de valor. Os economistas clássicos ingleses, desde Adam
Smith, já haviam percebido isso ao reconhecerem o trabalho como a verdadeira
fonte de riqueza das sociedades.
Marx
foi além. Para ele, o trabalho, ao se exercer sobre determinados objetos,
provoca nestes uma espécie de "ressurreição". Tudo o que é criado pelo
homem, diz Marx, contém em si um trabalho passado, "morto", que só pode
ser reanimado por outro trabalho. Assim, por exemplo, um pedaço de couro animal
curtido, uma faca e fios de linha são, todos, produtos do trabalho humano.
Deixados em si mesmos, são coisas mortas; utilizados para produzir um par de
sapatos, renascem como meios de produção e se incorporam num novo produto, uma
nova mercadoria, um novo valor.
Os
economistas ingleses já haviam postulado que o valor das mercadorias dependia do
tempo de trabalho gasto na sua produção. Marx acrescentou que este tempo de
trabalho se estabelecia em relação às habilidades individuais médias e às
condições técnicas vigentes na sociedade. Por isso, dizia que no valor de uma
mercadoria era incorporado o tempo de trabalho socialmente necessário à
sua produção.
De
modo geral, as mercadorias resultam da colaboração de várias habilidades profissionais
distintas; por isso, seu valor incorpora todos os tempos de trabalho
específicos. Por exemplo, o valor de um par de sapatos inclui não só o tempo
gasto para confeccioná-lo, mas também o dos trabalhadores que curtiram o couro,
produziram fios de linha, a máquina de costurar etc. O valor de todos esses
trabalhos está embutido no preço que o capitalista paga ao adquirir essas
matérias-primas e instrumentos, os quais, juntamente com a quantia paga a
título de salário, serão incorporados ao valor do produto.
Imaginemos
um capitalista interessado em produzir sapatos, utilizando para esse cálculo
uma unidade de moeda qualquer. Pois bem, suponhamos que a produção de um par
lhe custe 100 unidades de moeda de matéria-prima, mais 20 com o desgaste dos
instrumentos, mais 30 de salário diário pago a cada trabalhador. Essa soma -
150 unidades de moeda - representa sua despesa com investimentos. O valor do
par de sapatos produzido nessas condições será a soma de todos os valores
representados pelas diversas mercadorias que entraram na produção
(matéria-prima, instrumentos, força de trabalho), o que totaliza também 150
unidades de moeda.
Sabemos
que o capitalista produz para obter lucro, isto é, quer ganhar com seus
produtos mais do que investiu. No exemplo acima, vemos, porém, que o valor de
um produto corresponde exatamente ao que se investe para produzi-lo. Como então
se obtém o lucro?
O
capitalista poderia lucrar simplesmente aumentando o preço de venda do produto
- por exemplo, cobrando 200 pelo par de sapatos. Mas o simples aumento de
preços é um recurso transitório e com o tempo cria problemas. De um lado, uma
mercadoria com preços elevados, ao sugerir possibilidades de ganho imediato,
atrai novos capitalistas interessados em produzi-Ia. Com isso, porém, corre-se
o risco de inundar o mercado com artigos semelhantes, cujo preço fatalmente
cairá. De outro lado, uma alta arbitrária no preço de uma mercadoria qualquer
tende a provocar elevação generalizada nos demais preços, pois, nesse caso,
todos os capitalistas desejarão ganhar mais com seus produtos. Isso pode
ocorrer durante algum tempo, mas, se a disputa se prolongar, poderá levar o
sistema econômico à desorganização.
Na
verdade, de acordo com a análise de Marx, não é no âmbito da compra e da venda
de mercadorias que se encontram bases estáveis nem para o lucro dos
capitalistas individuais nem para a manutenção do sistema capitalista. Ao
contrário, a valorização da mercadoria se dá no âmbito de sua produção.
A mais-valia
Retomemos
o nosso exemplo. Suponhamos que o operário tenha uma jornada diária de nove
horas e confeccione um par de sapatos a cada três horas. Nestas três horas, ele
cria uma quantidade de valor correspondente ao seu salário, que é suficiente
para obter o necessário à sua subsistência. Como o capitalista lhe paga o valor
de um dia de força de trabalho, o restante do tempo, seis horas, o operário'
produz mais mercadorias, que geram um valor maior do que lhe foi pago na forma
de salário. A duração da jornada de trabalho resulta, portanto, de um cálculo
que leva em consideração o quanto interessa ao capitalista produzir para obter
lucro sem desvalorizar seu produto.
Suponhamos
uma jornada de nove horas, ao final da qual o sapateiro produza três pares de
sapatos. Cada par continua valendo 150 unidades de moeda, mas agora eles custam
menos ao capitalista. É que, no cálculo do valor dos três pares, a quantia
investida em meios de produção também foi multiplicada por três, mas a quantia
relativa ao salário - correspondente a um dia de trabalho - permaneceu
constante. Desse modo, o custo de cada par de sapatos se reduziu a 130
unidades.
Custo
de um par de sapatos na jornada de trabalho de três horas
|
Custo
de um par de sapatos na jornada de trabalho de nove horas
|
meios de produção
120
+ salário + 30
150
|
meios de
produção 120x3 =
360
+ salário + 30
390 ÷ 3 = 130
|
Assim,
ao final da jornada de trabalho, o operário recebe 30 unidades de moeda, ainda
que seu trabalho tenha rendido o dobro ao capitalista: 20 unidades de moeda, em
cada um dos três pares de sapatos produzidos. Esse valor a mais não retoma ao
operário: incorpora-se no produto e é apropriado pelo capitalista.
Visualiza-se,
portanto, que uma coisa é o valor da força de trabalho, isto é, o salário, e
outra -e o quanto esse trabalho rende ao capitalista. Esse valor excedente
produzido pelo operário é o que Marx chama de mais-valia.
O
capitalista pode obter mais-valia procurando aumentar constantemente a jornada
de trabalho, tal como no nosso exemplo. Essa é, segundo Marx, a mais-valia
absoluta. É claro, porém, que a extensão indefinida da jornada esbarra nos
limites físicos do trabalhador e na necessidade de controlar a própria
quantidade de mercadorias que se produz.
Agora,
pensemos numa indústria altamente mecanizada. A tecnologia aplicada faz
aumentar a produtividade, isto é, as mesmas nove horas de trabalho agora
produzem um número maior de mercadorias, digamos, 20 pares de sapatos. A
mecanização também faz com que a qualidade dos produtos dependa menos da
habilidade e do conhecimento técnico do trabalhador individual.
Numa
situação dessas, portanto, a força de trabalho vale cada vez menos e, ao mesmo
tempo, graças à maquinaria desenvolvida, produz cada vez mais. Esse é, em
síntese, o processo de obtenção daquilo que Marx denomina mais-valia relativa.
O
processo descrito esclarece a dependência do capitalismo em relação ao
desenvolvimento das técnicas de produção. Mostra, ainda, como o trabalho, sob o
capital, perde todo o atrativo e faz do operário mero "apêndice da
máquina".
As relações políticas
Após
essa análise detalhada do modo de produção capitalista, Marx passa ao estudo
das formas políticas produzidas no seu interior. Ele constata que as diferenças
entre as classes sociais não se reduzem a uma diferença quantitativa de
riquezas, mas expressam uma diferença de existência material. Os indivíduos de
uma mesma classe social partilham de uma situação de classe comum, que inclui
valores, comportamentos, regras de convivência e interesses.
A
essas diferenças econômicas e sociais segue-se uma diferença na distribuição de
poder. Diante da alienação do operariado, as classes economicamente dominantes
desenvolveram formas de dominação políticas que lhes permitem apropriar-se do
aparato de poder do Estado é, com ele, legitimar seus interesses sob a forma de
leis e planos econômicos e políticos.
Cada
forma assumida pelo Estado na sociedade burguesa, seja sob o regime liberal,
monárquico, monárquico constitucional ou ditatorial, representa maneiras
diferentes pelas quais ele se transforma num "comitê para gerir os
negócios comuns de toda a burguesia" (K. Marx e F. Engels, Manifesto do
Partido Comunista, in Cartas filosóficas e outros escritos, p. 86), seja
sob regime liberal, monárquico-constitucional, parlamentar ou ditatorial.
Para
Marx as condições específicas de trabalho geradas pela industrialização tendem
a promover a consciência de que há interesses comuns para o conjunto da classe
trabalhadora e, conseqüentemente, tendem a impulsionar a sua organização
política para a ação. A classe trabalhadora, portanto, vivendo uma mesma
situação de classe e sofrendo progressivo empobrecimento em razão das formas
cada vez mais eficientes de exploração do trabalhador, acaba por se organizar
politicamente.
Essa
organização é que permite a tomada de consciência da classe operária e sua
mobilização para a ação política.
Materialismo histórico
As
classes sociais não apresentam apenas uma diferente quantidade de riqueza, mas
também posição, interesse e consciência diversa. Para entender o capitalismo e
explicar a natureza da organização econômica humana, Marx desenvolveu uma
teoria abrangente e universal, que procura dar conta de toda e qualquer forma
produtiva criada pelo homem em todo o tempo e lugar. Os princípios básicos
dessa teoria estão expressos em seu método de análise - o materialismo
histórico.
Marx
parte do princípio de que a estrutura de uma sociedade qualquer reflete a forma
como os homens organizam a produção social de bens. A produção social,
segundo Marx, engloba dois fatores básicos: as forças produtivas e as relações
de produção.
As
forças produtivas constituem as condições materiais de toda a produção. Qualquer
processo de trabalho implica: determinados objetos,isto é, matérias-primas
identificadas e extraídas da natureza; e determinados instrumentos, ou seja,
o conjunto de forças naturais já transformadas e adaptadas pelo homem, como
ferramentas ou máquinas, utilizadas segundo uma orientação técnica específica.
O
homem, principal elemento das forças produtivas, é o responsável por
fazer a ligação entre a natureza e a técnica e os instrumentos. O
desenvolvimento da produção vai determinar a combinação e o uso desses diversos
elementos: recursos naturais, mão-de-obra disponível, instrumentos e técnicas produtivas.
Essas combinações procuram atingir o máximo de produção em função do mercado
existente. A cada forma de organização das forças produtivas corresponde uma
determinada forma de relações de produção.
As
relações de produção são as formas pelas quais os homens se organizam para
executar a atividade produtiva. Essas relações se referem às diversas maneiras
pelas quais são apropriados e distribuídos os elementos envolvidos no processo
de trabalho: as matérias-primas, os instrumentos e a técnica, os próprios
trabalhadores e o produto final. Assim, as relações de produção podem ser, num
determinado momento, cooperativistas (como num mutirão), escravistas (como na
Antigüidade), servis (como na Europa feudal), ou capitalistas (como na
indústria moderna).
Forças
produtivas e relações de produção são condições naturais e históricas de toda
atividade produtiva que ocorre em sociedade. A forma pela qual ambas existem e
são reproduzidas numa determinada sociedade constitui o que Marx denominou modo
de produção.
Para
Marx, o estudo do modo de produção é fundamental para compreender como se
organiza e funciona uma sociedade. As relações de produção, nesse sentido, são
consideradas as mais importantes relações sociais. Os modelos de família, as
leis, a religião, as idéias políticas, os valores sociais são aspectos cuja
explicação depende, em princípio, do estudo do desenvolvimento e do colapso de
diferentes modos de produção. Analisando a história, Marx identificou alguns
modos de produção específicos: sistema comunal primitivo, modo de produção
asiático, modo de produção antigo, modo de produção germânico, modo de produção
feudal e modo de produção capitalista. Cada qual representa diferentes
formas de organização da propriedade privada e da exploração do homem pelo
homem.
Em
cada modo de produção, a desigualdade de propriedade, como fundamento das
relações de produção, cria contradições básicas com o desenvolvimento das
forças produtivas. Essas contradições se acirram até provocar um processo
revolucionário, com a derrocada do modo de produção vigente e a ascensão de
outro.
Modo
de produção asiático - é a primeira forma que se seguiu à dissolução da comunidade
primitiva. Sua característica fundamental era a organização da agricultura e da
manufatura em unidades comunais autosuficientes. Sobre elas, havia um governo, que
poderia organizar os custos com guerras e obras economicamente necessárias,
como irrigação e vias de comunicação. As aldeias eram centros de comércio
exterior, e a produção agrícola excedente era apropriada em forma de tributo
pelo governo. A propriedade era comunal ou tribal. É o tipo característico da
China e do Egito antigos, também conhecido por "despotismo oriental".
A
coesão entre os indivíduos é assegurada pelas comunidades aldeãs. Modo de
produção germânico – neste modo de produção, cada lar ou unidade doméstica
isolada constitui um centro independente de produção. A sociedade se organiza
em linhagens, segundo parentesco consangüíneo, que transmite o ofício e a herança
da possessão ou do domínio.
Eventualmente,
esses lares isolados unem-se para atividades guerreiras, religiosas ou para a
solução de disputas legais. A sociedade é essencialmente rural. O isolamento entre
os domínios torna-os potencialmente mais "individualistas" que a comunidade
aldeã asiática. O Estado como entidade não existe. Este modo de produção caracterizaria
as populações "bárbaras" da Europa antiga.
Modo
de produção antigo - neste
as pessoas mantêm relações de localidade e não de consangüinidade. O trabalho
agrícola era considerado atividade própria de cidadãos livres. Dessa relação
entre cidadania e trabalho agrícola tem origem a nação, politicamente
centralizada no Estado.
A
vida é urbana, mas baseada na propriedade da terra, fato que Marx chama de
ruralização da cidade. A cidade é o centro da comunidade, havendo diferença
entre as terras do Estado e a propriedade particular explorada pelos
"patrícios" (cidadãos livres proprietários) por meio de seus
clientes. As sociedades típicas desse modo de produção são a grega e a romana.
A historicidade e a totalidade
A
teoria marxista repercutiu de maneira decisiva não só na Europa - objeto
primeiro de seus estudos - como nas colônias européias e em movimentos de
independência. Organizou os partidos marxistas entre operários - os sindicatos
-, levou intelectuais à crítica da realidade e influenciou as atividades
científicas de um modo geral e as ciências humanas em particular.
Além
de elaborar uma teoria que condenava as bases sociais da espoliação capitalista,
conclamando os trabalhadores a construir, por meio de sua prâxis revolucionária,
uma sociedade assentada na justiça social e igualdade real entre os homens,
Marx conseguiu, como nenhum outro, com sua obra, estabelecer relações profundas
entre a realidade, a filosofia e a ciência.
Por
sua formação filosófica, Marx concebia a realidade social como uma concretude
histórica, isto é, como um conjunto de relações de produção que caracteriza
cada sociedade num tempo e espaço determinados. Foi assim que analisou, em O 18
Brumário de Luís Bonaparte, o golpe de Estado ocorrido na França no
século XIX, quando o sobrinho de Napoleão I, parodiou o feito do tio que, em
1799, conseguiu substituir a República pela Ditadura.
Por
outro lado, cada sociedade representava para Marx uma totalidade, isto é, um
conjunto único e integrado das diversas formas de organização humana nas suas
mais diversas instâncias - família, poder, religião. Entretanto, apesar de
considerar as sociedades da sua época e do passado como totalidades e como
situações históricas concretas, Marx conseguiu, pela profundidade de suas
análises, extrair conclusões de caráter geral e aplicáveis a formas sociais
diferentes. Assim, ao analisar o golpe de Luís Bonaparte, identifica na
estrutura de classes estabelecida na França aspectos universais da dinâmica da
luta de classes.
·A
amplitude da contribuição de Marx
o
sucesso e a penetração do materialismo histórico, quer no campo da ciência -
ciência política, econômica e social-, quer no campo da organização política,
se deve ao universalismo de seus princípios e ao caráter totalizador que
imprimiu às suas idéias.
Além
desse universalismo da teoria marxista - mérito que a diferencia de todas as
teorias subseqüentes - outras questões adquiriram nova dimensão com os
princípios sustentados por Karl Marx. Um deles foi a objetividade científica,
tão perseguida pelas ciências humanas. Para Marx, a questão da objetividade só
se coloca enquanto consciência crítica. A ciência, assim como a ação política,
só pode ser verdadeira e não ideológica se refletir uma situação de classe e,
conseqüentemente, uma visão crítica da realidade. Assim, objetividade não é uma
questão de método, mas de como o pensamento científico se insere no contexto
das relações de produção e na história.
A
idéia de uma sociedade "doente" ou "normal", preocupação
dos cientistas sociais positivistas, desaparece em Marx. Para ele a sociedade é
constituída de relações de conflito e é de sua dinâmica que surge a mudança
social. Fenômenos como luta, conflito, revolução e exploração são constituintes
dos diversos momentos históricos e não disfunções sociais.
A
partir do conceito de movimento histórico proposto por Hegel, assim como do
historicismo existente em Weber, Marx redimensiona o estudo da sociedade
humana. Suas idéias marcaram de maneira definitiva o pensamento científico e a
ação política dessa época, assim como das posteriores, formando duas diferentes
maneiras de atuação sob a bandeira do marxismo. A primeira é abraçar o ideal
comunista, de uma sociedade onde estão abolidas as classes sociais e a
propriedade privada dos meios de produção.
Outra
é exercer a crítica à realidade social, procurando suas contradições, desvendando
as relações de exploração e expropriação do homem pelo homem, de modo a
entender o papel dessas relações no processo histórico. Não é preciso afirmar a
contribuição da teoria marxista para o desenvolvimento das ciências sociais.
A
abordagem do conflito, da dinâmica histórica, da relação entre consciência e
realidade e da correta inserção do homem e de sua práxis no contexto social
foram conquistas jamais abandonadas pelos sociólogos. Isso sem contar a
habilidade com que o método marxista possibilita o constante deslocamento do
geral para o particular, das leis macrossociais para suas manifestações históricas,
do movimento estrutural da sociedade para a ação humana individual e coletiva.
A sociologia, o socialismo e o
marxismo
Marx
contribuiu para uma nova abordagem do conflito, da relação entre consciência e
realidade, e da dinâmica histórica. A teoria marxista teve ampla aceitação
teórica e metodológica, assim como política e revolucionária. Já em 1864, em
Londres, Karl Marx e Friedrich Engels - companheiro em grande parte de suas
obras - estruturaram a Primeira Associação Internacional de Operários, ou
Primeira Internacional, promovendo a organização e a defesa dos operários em
nível internacional. Extinguida em 1873, a difusão das idéias e das propostas marxistas
ficou por conta dos sindicatos existentes em diversos países e nos partidos,
especialmente os social-democratas.
A
Segunda Internacional surgiu na época do centenário da Revolução Francesa
(1889), quando diversos congressos socialistas tiveram lugar nas principais capitais
européias, com várias tendências, nem sempre conciliáveis. A Primeira Guerra
Mundial pôs fim à Segunda Internacional, em 1914. Em 1917, uma revolução
inspirada nas idéias marxistas, a Revolução Bolchevique, na Rússia, criava no
mundo o primeiro Estado operário. Em 1919, inaugurava-se a Terceira
Internacional ou Comintern, que, como a primeira, procurava difundir os ideais
comunistas e organizar os partidos e a luta dos operários pela tomada do poder.
Ela continua atuante até hoje, enfrentando intensa crise provocada pelo fim da
União Soviética e pela expansão mundial do neoliberalismo.
A
aceitação dos ideais marxistas não se restringia mais apenas à Europa. Difundia-se
pelos quatro continentes, à medida que se desenvolvia o capitalismo internacional.
À formação do operariado no restante do mundo seguia-se o surgimento de
sindicatos e partidos marxistas. Os ideais marxistas se adequavam também
perfeitamente à luta pela independência que surgia nas colônias européias da
África e da Ásia, após a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, assim como à luta
por soberania e autonomia, existente nos países latino-americanos.
Em
1919, surgiram partidos comunistas na América do Norte, na China e no México.
Em 1920, no Uruguai; em 1922, no Brasil e no Chile; e, em 1925, em Cuba. O
movimento revolucionário tornava-se mais forte à medida que os Estados Unidos e
a URSS emergiam como potências mundiais e passavam a disputar sua influência no
mundo. Várias revoluções como a chinesa, a cubana, a vietnamita e a coreana
instauraram regimes operários que, apesar das suas diferenças, organizavam um
sistema político com algumas características comuns - forte centralização,
economia altamente planejada, coletivização dos meios de produção, fiscalismo e
uso intenso de propaganda ideológica e do culto ao dirigente.
Intensificava-se,
nos anos cinqüenta e sessenta, a oposição entre os dois blocos mundiais - o
capitalista, liderado pelos Estados Unidos, e o socialista, liderado pela URSS.
A polarização política e ideológica é transferida para o conjunto do método e
da teoria marxista que passam a ser usados, sob o peso da direção do stalinismo
na URSS e dos partidos comunistas a ele filiados, como um corpo doutrinário
fechado para legitimar a tese do "socialismo em um só país",
preconizada pela liderança soviética, e da gestão burocrática dos estados
socialistas. O marxismo deixou de ser um método de análise da realidade social
para transformar-se em ideologia, perdendo, assim, parte de sua capacidade de
elucidar os homens em relação ao seu momento histórico e mobilizá-Ios para uma
tomada consciente de posição.
Entre
1989 e 1991, desfazia-se o bloco soviético após uma crise interna e externa
bastante intensa - dificuldade em conciliar as diferenças regionais e étnicas,
falta de recursos para manter um estado de permanente beligerância, atraso
tecnológico, excesso de burocracia, baixa produtividade, escassez de produtos,
inflação e corrupção, entre outros fatores. O fim da União Soviética provocou
um abalo nos partidos de esquerda do mundo todo e o redimensionamento das
forças internacionais.
Toda
essa explicação a respeito do marxismo se faz necessária por diversas razões.
Em primeiro lugar porque a sociologia confundiu-se com socialismo em muitos
países, em especial nos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento - como
são hoje chamados os países dependentes da América Latina e da Ásia, surgidos
das antigas colônias européias. Nesses países, intelectuais e líderes políticos
associaram de maneira categórica o desenvolvimento da sociologia ao
desenvolvimento da luta política e dos partidos marxistas. Entre eles, a
derrocada do império soviético foi sentida como uma condenação e quase como a
inviabilidade da própria ciência.
É
preciso lembrar que as teorias marxistas, como o próprio Marx propôs,
transcendem o momento histórico no qual são concebidas e têm uma validade que
extrapola qualquer das iniciativas concretas que buscam viabilizar a sociedade
justa e igualitária proposta por Marx. Nunca será bastante lembrar que a
ausência da propriedade privada dos meios de produção é condição necessária mas
não suficiente da sociedade comunista teorizada por Marx. Assim, não se
devem confundir tentativas de realizações levadas a efeito por inspiração das
teorias marxistas com as propostas de Marx de superação das contradições
capitalistas. Também é improcedente - e de maneira ainda mais rigorosa -
confundir a ciência com o ideário político de qualquer partido. Pode haver
integração entre um e outro mas nunca identidade.
Em
segundo lugar, é preciso entender que a história não termina em qualquer de
suas manifestações particulares, quer na vitória comunista, quer na
capitalista. Como Marx mostrou, o próprio esforço por manter e reproduzir um
modo de produção acarreta modificações qualitativas nas forças em oposição.
Assim,
em termos científicos e marxistas, é preciso voltar o olhar para a compreensão
da emergência de novas forças sociais e de novas contradições. Enganam-se os
teóricos de direita e de esquerda que vêem em dado momento a realização mítica
de um modelo ideal de sociedade.
Em
terceiro lugar, hoje se vive nas ciências, de uma maneira geral, um momento de
particular cautela, pois, após dois ou três séculos de crença absoluta na
capacidade redentora da ciência, em sua possibilidade de explicitar de maneira
inequívoca e permanente a realidade, já não se acredita na infalibilidade dos
modelos, e o trabalho permanente de discussão, revisão e complementação se
coloca como necessário. Não poderia ser diferente com as ciências sociais, que,
do contrário, adquiririam um estatuto de religião e fé, uma vez que se
apoiariam em verdades eternas e imutáveis.
Assim,
o fim da União Soviética não significou o fim da história ou da sociologia, nem
o esgotamento do marxismo como postura teórica das mais amplas e fecundas, com
um poder de explicação não alcançado pelas análises posteriores. Nem sequer
terminou com a derrubada do Muro de Berlim o ideal de uma sociedade justa e
igualitária. O que se torna necessário é rever essa sociedade cujas relações de
produção se organizam sob novos princípios - enfraquecimento dos estados
nacionais, mundialização do capitalismo, formação de blocos nacionais e
organização política de minorias étnicas, religiosas e até sexuais - entendendo
que as contradições não desapareceram mas se expressam em novas instâncias.
Em
seu livro De volta ao palácio do barba azul, Steiner mostra como a sociedade
pós-clássica acabou por desmanchar os antagonismos mais agudos que existiam na
sociedade ocidental. Os grupos etários se aproximam, as distinções
comportamentais dos sexos desaparecem, o mundo rural e o urbano se integram
numa estrutura única industrial, e assim por diante. É nessa perspectiva que
ele propõe uma releitura da teoria marxista, tentando encontrar em diferentes
conjunturas sociais formas de contradição e exploração como as que Marx
distinguiu na realidade francesa e na inglesa. Por mais que pretendesse
entender o desenvolvimento universal da sociedade humana, Marx jamais deixou de
respeitar cientificamente a especificidade e a historicidade de cada uma de
suas manifestações.
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