Introdução:
o que é fato social
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Em uma de suas obras fundamentais, As
regras do método sociológico, publicada em 1895, Durkheim definiu com
clareza o objeto da sociologia - os fatos
sociais.
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Distingue
três características dos fatos sociais. A primeira delas é a coerção social,
ou seja, a força que os fatos exercem sobre os indivíduos, levando-os a
conformar-se às regras da sociedade em que vivem, independentemente de sua
vontade e escolha. Essa força se manifesta quando o indivíduo adota um
determinado idioma, quando se submete a um determinado tipo de formação familiar
ou quando está subordinado a determinado código de leis.
O
grau de coerção dos fatos sociais se toma evidente pelas sanções a que o
indivíduo estará sujeito quando tenta se rebelar contra elas. As sanções podem ser
legais ou espontâneas. Legais são as sanções prescritas pela
sociedade, sob a forma de leis, nas quais se estabelece a infração e a
penalidade subseqüente. Espontâneas seriam as que afloraríam como
decorrência de uma conduta não adaptada à estrutura do grupo ou da sociedade à
qual o indivíduo pertence. Diz Durkheim, exemplificando este último tipo de
sanção:
"Se
sou industrial, nada me proíbe de trabalhar utilizando processos e técnicas do século
passado; mas, se o fizer, terei a ruína como resultado inevitável." (p. 3)
Do
mesmo modo, uma ofensa num grupo social pode não ter penalidade prevista por
lei, mas o grupo pode espontaneamente reagir penalizando o agressor. A reação
negativa a certa forma de comportamento é, muitas vezes, mais intimidadora do
que a lei. Jogar lixo no chão ou fumar em espaços particulares - mesmo quando
não proibidos por lei nem reprimidos por penalidade explícita - são
comportamentos inibidos pela reação espontânea dos grupos que a isso se
opuserem.
A
educação - entendida de forma geral, ou seja, a educação formal e a informal
- desempenha, segundo Durkheim, uma importante tarefa nessa conformação dos
indivíduos à sociedade em que vivem, a ponto de, após algum tempo, as regras
estarem intemalizadas e transformadas em hábitos. O uso de uma determinada
língua ou o predomínio no uso da mão direita são intemalizados no indivíduo que
passa a agir assim sem sequer pensar a respeito.
A
segunda característica dos fatos sociais é que eles existem e atuam sobre os
indivíduos independentemente de sua vontade ou de sua adesão consciente, ou
seja, são exteriores aos indivíduos. As regras sociais, os costumes, as
leis, já existem antes do nascimento das pessoas, são a elas impostos por
mecanismos de coerção social, como a educação. Portanto, os fatos sociais são
ao mesmo tempo coercitivos e dotados de existência exterior às
consciências individuais.
A
terceira característica apontada por Durkheim é a generalidade. É social
todo fato que é geral, que se repete em todos os indivíduos ou, pelo menos,
na maioria deles. Por essa generalidade, os fatos sociais manifestam sua
natureza coletiva ou um estado comum ao grupo, como as formas de habitação, de
comunicação, os sentimentos e a moral.
A objetividade do fato social
Uma
vez identificados e caracterizados os fatos sociais, Durkheim procurou definir
o método de conhecimento da sociologia. Para ele, como para os positivistas de
maneira geral, a explicação científica exige que o pesquisador mantenha certa
distância e neutralidade em relação aos fatos, resguardando a
objetividade de sua análise.
Além
disso, é preciso, segundo Durkheim, que o sociólogo deixe de lado suas prenoções,
isto é, seus valores e sentimentos pessoais em relação ao acontecimento a
ser estudado, pois nada têm de científico e podem distorcer a realidade dos
fatos. Essa postura exige o não-envolvimento afetivo ou de qualquer outra
espécie entre o cientista e seu objeto. A neutralidade exige também a não-interferência
do cientista no fato observado. Assim Durkheim imaginava que, ao estudar, por
exemplo, uma briga entre gangues, o cientista não deveria envolver-se nem
permitir que seus valores interferissem na objetividade de sua análise. Para
ele, o trabalho científico exigia, portanto, a eliminação de quaisquer traços
de subjetividade, além de uma atitude de distanciamento.
Procurando
garantir à sociologia um método tão eficiente quanto o desenvolvido pelas
ciências naturais, Durkheim aconselhava o sociólogo a encarar os fatos sociais
como coisas,isto é, objetos que, lhe sendo exteriores, deveriam ser
medidos, observados e comparados independentemente do que os indivíduos
envolvidos pensassem ou declarassem a seu respeito. Tais formulações seriam
apenas opiniões, juizos de valor individuais que podem servir de indicadores
dos fatos sociais, mas mascaram as leis de organização social, cuja
racionalidade só é acessível ao cientista.
Imbuído
dos,Rrindl2.ios positivistas, Durkheim queria com esse rigor, à maneira do
método que garantia o'sucesso das ciências exatas, definir a sociologia como
ciência, rompendo com as idéias e o senso comum - "achismos" - que
interpretavam de maneira vulgar a realidade social"*""
Para
apoderar-se dos fatos sociais, o· cientista deve identificar, dentre os acontecimentos
gerais e repetitivos, aqueles que apresentam características exteriores comuns.
Assim, por exemplo, o conjunto de atos que suscitam na sociedade reações
concretas classificadas como "penalidades" constituem os fatos
sociais identificáveis como "crime". Vemos que os fenômenos devem ser
sempre considerados em suas manifestações coletivas, distinguindo-se dos
acontecimentos individuais ou acidentais. A generalidade distingue o essencial do
fortuito e especifica a natureza s~ciológica dos fenômenos.
O
suicídio, amplamente estudado por Durkheim, constituía-se, nesse sentido, em
fato social por corresponder a todas essas características: é geral, existindo
em todas as sociedades; e, embora sendo fortuito e resultando de razões
particulares, apresenta em todas elas certa regularidade, recrudesce ou diminui
de intensidade em certas condições históricas, expressando assim sua natureza
social. Durkheim aconselhava o cientista a estudar os fatos sociais como
coisas, fenômenos que lhe são exteriores e podem ser observados e
medidos de forma objetiva.
Sociedade: um organismo em adaptação
Para
Durkheim, a sociologia tinha por finalidade não só explicar a sociedade como
também encontrar soluções para a vida social. A sociedade, como todo organismo,
apresentaria estados normais e patológicos, isto é, saudáveis e
doentios.
Durkheim
considera um fato social como normal quando se encontra generalizado pela
sociedade ou quando desempenha alguma função importante para sua adaptação ou sua
evolução. Assim, afirma que o crime, por exemplo, é normal não apenas
por ser encontrado em toda e qualquer sociedade e em todos os tempos, mas
também por representar um fato social que integra as pessoas em tomo de uma
conduta valorativa, que pune o comportamento considerado nocivo.
A
generalidade de um fato social representava, para Durkheim, o consenso
social e a vontade coletiva. Ageneralidade de um fato social, isto é,
sua unanimidade, é garantia de normalidade na medida em que representa o consenso
social, a vontade coletiva, ou o acordo de um grupo a respeito de determinada
questão.
Diz
Durkheim:
"
para saber se o estado econômico atual dos povos europeus, com sua característica
ausência de organização, é normal ou não, procurar-se-á no passado o que lhe
deu origem. Se estas condições são ainda aquelas em que atualmente se encontra
nossa sociedade, é porque a situação é normal, a despeito dos protestos que
desencadeia." (p. 57)
Partindo,
pois, do princípio de que o objetivo máximo da vida social é promover a
harmonia da sociedade consigo mesma e com as demais sociedades, e que essa
harmonia é conseguida por meio do consenso social, a "saúde" do
organismo social se confunde com a generalidade dos acontecimentos.
Quando
um fato põe em risco a harmonia, o acordo, o consenso e, portanto, a adaptação
e a evolução da sociedade, estamos diante de um acontecimento de caráter
mórbido e de uma sociedade doente.
Portanto,
normal é aquele fato que não extrapola os limites dos acontecimentos
mais gerais de uma determinada sociedade e que reflete os valores e as condutas
aceitas pela maior parte da população. Patológico é aquele que se encontra
fora dos limites permitidos pela ordem social e pela moral vigente. Os fatos
patológicos, como as doenças, são considerados transitórios e excepcionais. Aquilo
que põe em risco a harmonia e o consenso representa um estado mórbido da
sociedade.
A consciência coletiva
Toda
a teoria sociológica de Durkheim pretende demonstrar que os fatos sociais têm
existência própria e independem daquilo que pensa e faz cada indivíduo em
particular. Embora todos possuam sua "consciência individual", seu
modo próprio de se comportar e interpretar a vida, podem-se notar, no interior
de qualquer grupo ou sociedade, formas padronizadas de conduta e pensamento.
Essa constatação está na base do que Durkheim chamou de consciência
coletiva.
A
definição de consciência coletiva aparece pela primeira vez na obra Da
divisão do trabalho social: trata-se do "conjunto das crenças e dos
sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade" que
"forma um sistema determinado com vida própria" (p. 342).
A
consciência coletiva não se baseia na consciência de indivíduos singulares ou
de grupos específicos, mas está espalhada por toda a sociedade. Ela revelaria,
segundo Durkheim, o "tipo psíquico da sociedade", que não seria
apenas o produto das consciências individuais, mas algo diferente, que se imporia
aos indivíduos e perduraria através das gerações.
A
consciência coletiva é, em certo sentido, a forma moral vigente na sociedade. Ela
aparece como um conjunto de regras fortes e estabeleci das que atribuem valor e
delimitam os atos individuais. É a consciência coletiva que define o que, numa
sociedade, é considerado "imoral", "reprovável" ou
"criminoso".
Morfologia social: as espécies sociais
Para
Durkheim, a sociologia deveria ter ainda por objetivo comparar as diversas
sociedades. Constituiu assim o campo da morfologia social, ou seja, a classificação
das espécies sociais numa nítida referência às espécies estudadas em
biologia. Essa referência, utilizada também em outros estudos teóricos, tem
sido considerada errônea uma vez que todo comportamento humano, por mais diferente
que se apresente, resulta da expressão de características universais de uma
mesma espécie.
Durkheim
considerava que todas as sociedades haviam evoluído a partir da horda, a forma
social mais simples, igualitária, reduzida a um único segmento onde os
indivíduos se assemelhavam aos átomos, isto é, se apresentavam justapostos e iguais.
Desse ponto de partida, foi possível uma série de combinações das quais
originaram-se outras espécies sociais identificáveis no passado e no
presente, tais como os clãs e as tribos.
Durkheim
acreditava numa evolução geral das espécies sociais a partir da horda. Para ele,
o trabalho de classificação das sociedades – como tudo o mais - deveria ser
efetuado com base em apurada observação experimental. Guiado por esse
procedimento, estabeleceu a passagem da solidariedade mecânica para a solidariedade
orgânica como o motor de transformação de toda e qualquer sociedade.
Para
Durkheim a normalidade só pode ser entendida em função do estágio social da
sociedade em questão:
"
do ponto de vista puramente biológico, o que é normal para o selvagem não o é
sempre para o civilizado, e vice-versa." (As regras do método
sociológico, p. 52.)
A solidariedade orgânica é
típica da acelerada divisão do trabalho social, segundo Durkheim. Dado o fato
de que as sociedades variam de estágio, apresentando formas diferentes de
organização social que tornam possível defini-Ias como "inferiores"
ou "superiores", como o cientista classifica os fatos normais e os anormais
em cada sociedade?
E
continua:
Divisão
do trabalho social, um aspecto da solidariedade orgânica em Durkheim. (Desenho de
W. Hearth Robison) "Um fato social não pode, pois, ser acoimado de normal
para uma espécie social determinada senão em relação com uma fase, igualmente
determinada, de seu desenvolvimento." (p. 52)
Solidariedade
mecânica, para
Durkheim, era aquela que predominava nas sociedades pré-capitalistas, onde os
indivíduos se identificavam por meio da família, da religião, da tradição e dos
costumes, permanecendo em geral independentes e autônomos em relação à divisão
do trabalho social. A consciência coletiva exerce aqui todo seu poder de
coerção sobre os indivíduos.
Solidariedade
orgânica é
aquela típica das sociedades capitalistas, onde, pela acelerada divisão do
trabalho social, os indivíduos se tornavam interdependentes. Essa
interdependência garante a união social, em lugar dos costumes, das tradições ou
das relações sociais estreitas. Nas sociedades capitalistas, a consciência coletiva
se afrouxa. Assim, ao mesmo tempo que os indivíduos são mutuamente dependentes,
cada qual se especializa numa atividade e tende a desenvolver maior autonomia
pessoal.
Durkheim e a sociologia científica
Durkheim
se distingue dos demais positivistas porque suas idéias ultrapassaram a
reflexão filosófica e chegaram a constituir um todo organizado e sistemático de
pressupostos teóricos e metodológicos sobre a sociedade. O empirismo
positivista, que pusera os filósofos diante de uma realidade social a ser
especulada, transformou-se, em Durkheim, numa rigorosa postura empírica,
centrada na verificação dos fatos que poderiam ser observados, mensurados e
relacionados através de dados coletados diretamente pelo cientista. Encontramos
em seus estudos um inovador e fecundo uso da matemática estatística e uma
integrada utilização das análises qualitativa e quantitativa. Observação,
mensuração e interpretação eram aspectos complementares do método durkheimiano.
Para
isso, Durkheim procurou estabelecer os limites e as diferenças entre a
particularidade e a natureza dos acontecimentos filosóficos, históricos, psicológicos
e sociológicos. Elaborou um conjunto coordenado de conceitos e de técnicas de
pesquisa que, embora norteado por princípios das ciências naturais, guiava o
cientista para o discemimento de um objeto de estudo próprio e dos meios
adequados para interpretá-lo.
Ainda
que preocupado com as leis gerais capazes de explicar a evolução das sociedades
humanas, Durkheim ateve-se também às particularidades da sociedade em que
vivia, aos mecanismos de coesão dos pequenos grupos e à formação de sentimentos
comuns resultantes da convivência social.
Distinguiu
diferentes instâncias da vida social e seu papel na organização social, como a
educação, a família e a religião. Pode-se dizer que já se delineava uma
apreensão da
sociologia
em que se relacionavam harmonicamente o geral e o particular. Havia busca,
ainda que não expressa, da noção de totalidade. Essa noção foi desenvolvida
particularmente por seu sobrinho e colaborador Marcel Mauss, em seus estudos
antropológicos. Em vista de todos esses aspectos tão relevantes e inéditos, os
limites antes impostos pela filosofia positivista perderam sua importância,
fazendo dos estudos de Durkheim um constante objeto de interesse da sociologia
contemporânea.
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