segunda-feira, 15 de outubro de 2012

O aprendiz de escritor


Escrevo há muito tempo. Costumo dizer que, se ainda não aprendi – e acho mesmo que não aprendi, a gente nunca para de aprender –, não foi por falta de prática. Porque comecei muito cedo. Na verdade, todas as minhas recordações estão ligadas a isso, a ouvir e contar histórias.
Não só as histórias das personagens que me encantaram, o Saci-Pererê1, o Negrinho do Pastoreio2, a Cuca3, Hércules4, Mickey Mouse5, Tarzan6 e os piratas. Mas também as minhas próprias histórias, as histórias de minhas personagens, estas criaturas reais ou imaginárias com quem convivi desde a infância.
 “Na verdade", eu escrevi ali em cima. Verdade é uma palavra muito relativa para um escritor de ficção. O que é verdade, o que é imaginação?
No colégio onde fiz o segundo grau, o Júlio de Castilhos, havia um rapaz que tinha fama de mentiroso. Todo mundo sabia que ele era mentiroso. Todo mundo, menos ele. Uma vez, o rádio deu uma notícia alarmante: um avião em dificuldades sobrevoava Porto Alegre. Podia cair a qualquer momento.
Fomos para o colégio, naquele dia, preocupados; e conversávamos sobre o assunto, quando apareceu ele, o Mentiroso. Pálido: – Vocês nem podem imaginar! Uma pausa dramática, e logo em seguida: – Sabem este avião que está em perigo? Caiu perto da minha casa. Escapamos por
pouco. Gente, que coisa horrível. E começou a descrever o avião incendiando, o piloto gritando por socorro... Uma cena impressionante.
Aí veio um colega correndo, com a notícia: o avião acabara de aterrissar, são e salvo. Todo mundo começou a rir. Todo mundo, menos o Mentiroso: – Não pode ser! – repetia, incrédulo7, irritado. – Eu vi o avião cair!  
Agora, quando lembro este fato, concluo que não estava mentindo. Ele vira, realmente, o avião cair. Com os olhos da imaginação, decerto; mas para ele o avião tinha caído, e tinha incendiado, e tudo o mais. E ele acreditava no que dizia, porque era um ficcionista8. Tudo que precisava, naquele momento, era um lápis e papel. Se tivesse escrito o que dizia, seria um escritor; como não escrevera, tratava-se de um mentiroso. Uma questão de nomes, de palavras.
Palavras. São tudo, para quem escreve. Ou quase tudo. Como a serra, o martelo, a plaina, a madeira, a cola e os pregos para o marceneiro; como a colher, o prumo, os tijolos e a argamassa para o pedreiro; como a fazenda, a linha, a tesoura e a agulha para o alfaiate.
Estou falando em instrumentos de trabalho, porque literatura nem sempre parece trabalho. Há uma história (sempre contando histórias, Moacyr Scliar! Sempre contando histórias!) sobre um escritor e seu vizinho. O vizinho olhava o escritor que estava sentado, quieto, no jardim, e perguntava: Descansando, senhor escritor? Ao que o escritor respondia: Não, trabalhando.
Daí a pouco o vizinho via o escritor mexendo na terra, cuidando das plantas: Trabalhando? Não, respondia o escritor, descansando. As aparências enganam; enganaram até o próprio escritor. (...)
As palavras são tudo, você disse, Moacyr? Você mentiu, Moacyr. Mais uma vez você mentiu. As palavras não são tudo e disso você bem sabe. A emoção conta, caro Moacyr. A emoção, as ideias, as lembranças.

1 Saci-Pererê: personagem do folclore brasileiro, conhecido por suas brincadeiras. É um negrinho, que tem uma perna só, usa um gorro vermelho e fuma cachimbo.
2 Negrinho do Pastoreio: personagem do folclore brasileiro. É um escravo que foi punido por seu patrão por ter perdido um cavalo no pasto, mas foi protegido pela Virgem Maria. Diz-se que até hoje anda pelos campos à procura de objetos perdidos, para ajudar aqueles que lhe acendem velas pedindo ajuda.
3 Cuca: personagem do folclore brasileiro, representada por uma velha, com cabeça de jacaré, que possui uma voz assustadora. De acordo com a lenda, a Cuca assusta e pega as crianças que não obedecem a seus pais.
4 Hércules: personagem da mitologia grega, conhecido por sua força e virilidade.
5 Mickey Mouse: primeiro personagem criado por Walt Disney, em 1928.
6 Tarzan: personagem criado pelo escritor note-americano Edgar Burroughs, em 1912. É um menino inglês que acaba sendo criado por macacos em uma selva.
7 Incrédulo: que não crê, não acredita.
8 Ficcionista: autor de obras de ficção.

Fonte: SCLIAR, Moacyr. O aprendiz de escritor. In: ______. Memórias de um aprendiz de escritor. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1984. p. 9-10.

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