sábado, 24 de março de 2012

Qualidades do texto: Coerência, Coesão (III)

Título : Qualidades do texto: Coerência, Coesão (III)
Conteúdo :

Coerência e progressão textual
A pesca
Affonso Romano de Sant’Anna
o anil
o anzol
o azul
o silêncio
o tempo
o peixe
a agulha
vertical
mergulha
a água
a linha
a espuma
o tempo
a âncora
o peixe
a garganta
a âncora
o peixe
a boca
o arranco
o rasgão
aberta a água
aberta a chaga
aberto o anzol
aquelíneo
ágilclaro
estabanado
o peixe
a areia
o sol
Apesar dos poucos elementos de coesão, temos um texto coerente porque há unidade de sentido que é dada a partir do próprio título; ele também é elemento de referência e ativa o conhecimento de mundo. As palavras, assim, ganham sentido e vemos que se trata da descrição de uma pescaria, situação que corresponde ao esquema que temos arquivado na memória.
Como já dissemos, a coerência é o todo de sentido em que resulta o texto. Para que ela se estabeleça, é preciso observar a não-contradição de sentidos entre partes do texto, o que se constrói pelos mecanismos de coesão já explicitados.
Além disso, de acordo com Fiorin & Platão (1999), há vários níveis que devem ser levados em conta, como o narrativo, o figurativo, o temporal, o argumentativo, o espacial e o de linguagem. Para todos eles, dois tipos de coerência são fundamentais: a coerência intra e extratextual. A primeira corresponde à organização e encadeamento das partes do texto, ao passo que a segunda pode estar relacionada tanto ao conhecimento de mundo como ao conhecimento lingüístico da falante.
No entanto, há textos que podem ser incoerentes aparentemente. Para se verificar se o texto tem sentido, é preciso considerar vários fatores que podem levar à atribuição de significado ao texto. São eles: o contexto, a situação comunicativa, o gênero, o(s) intertexto(s).
Esses fatores determinam as condições de produção e de recepção de um texto. É preciso ter conhecimento dessas condições para julgar coerente (ou não) um texto. Para exemplificar, um texto literário, por ser ficcional, admite o uso da linguagem figurada, ao passo que um texto científico não a admite. Portanto, se houver o uso de uma metáfora em um texto científico, por exemplo, este será julgado incoerente.
Vejamos um texto para melhor ilustrar o que foi dito até aqui.
O leão, o burro e o rato
Um leão, um burro e um rato voltavam, afinal, da caçada que haviam empreendido juntos(1) e colocaram numa clareira tudo que tinham caçado: dois veados, algumas perdizes, três tatus, uma paca e muita caça menor. O leão sentou-se num tronco e, com voz tonitruante que procurava inutilmente suavizar, berrou:
— Bem, agora que terminamos um magnífico dia de trabalho, descansemos aqui, camaradas, para a justa partilha do nosso esforço conjunto. Compadre burro, por favor, você, que é o mais sábio de nós três, com licença do compadre rato, você, compadre burro, vai fazer a partilha desta caça em três partes absolutamente iguais. Vamos, compadre rato, até o rio, beber um pouco de água, deixando nosso grande amigo burro em paz para deliberar.
Os dois se afastaram, foram até o rio, beberam água(2) e ficaram um tempo. Voltaram e verificaram que o burro tinha feito um trabalho extremamente meticuloso, dividindo a caça em três partes absolutamente iguais. Assim que viu os dois voltando, o burro perguntou ao leão:
— Pronto, compadre leão, aí está: que acha da partilha?
O leão não disse uma palavra. Deu uma violenta patada na nuca do burro, prostrando-o no chão, morto.
Sorrindo, o leão voltou-se para o rato e disse:
— Compadre rato, lamento muito, mas tenho a impressão de que concorda em que não podíamos suportar a presença de tamanha inaptidão e burrice. Desculpe eu ter perdido a paciência, mas não havia outra coisa a fazer. Há muito que eu não suportava mais o compadre burro. Me faça um favor agora — divida você o bolo da caça, incluindo, por favor, o corpo do compadre burro. Vou até o rio, novamente, deixando-lhe calma para uma deliberação sensata.
Mal o leão se afastou, o rato não teve a menor dúvida. Dividiu o monte de caça em dois: de um lado, toda a caça, inclusive o corpo do burro. Do outro apenas um ratinho cinza(3) morto por acaso. O leão ainda não tinha chegado ao rio, quando o rato chamou:
— Compadre leão, está pronta a partilha!
O leão, vendo a caça dividida de maneira tão justa, não pôde deixar de cumprimentar o rato:
— Maravilhoso, meu caro compadre, maravilhoso! Como você chegou tão depressa a uma partilha tão certa?
E o rato respondeu:
— Muito simples. Estabeleci uma relação matemática entre seu tamanho e o meu — é claro que você precisa comer muito mais. Tracei uma comparação entre a sua força e a minha — é claro que você precisa de muito maior volume de alimentação do que eu. Comparei, ponderadamente, sua posição na floresta com a minha — e, evidentemente, a partilha só podia ser esta. Além do que, sou um intelectual, sou todo espírito!
— Inacreditável, inacreditável! Que compreensão! Que argúcia! — exclamou o leão, realmente admirado. — Olha, juro que nunca tinha notado, em você, essa cultura. Como você escondeu isso o tempo todo, e quem lhe ensinou tanta sabedoria?
— Na verdade, leão, eu nunca soube nada. Se me perdoa um elogio fúnebre, se não se ofende, acabei de aprender tudo agora mesmo, com o burro morto.
MORAL: SÓ UM BURRO TENTA FICAR COM A PARTE DO LEÃO.
(1). A conjugação de esforços tão heterogêneos na destruição do meio ambiente é coisa muito comum.
(2). Enquanto estavam bebendo água, o leão reparou que o rato estava sujando a água que ele bebia. Mas isso já é outra fábula.
(3). Os ratos devem se contentar em se alimentar de ratos. Como diziam os latinos: Similia similibus curantur. (FERNANDES, Millôr)1

1 www.uol.com.br/millor (acesso em 05/12/06)


Ao analisarmos o texto, podemos verificar o seguinte:
No texto, a coerência narrativa é estabelecida, primeiramente, pela seqüência de ações que se encadeiam: o leão propõe um desafio ao burro e ao rato, ambos aceitam, mas o burro não capta a verdadeira intenção do leão e acaba morto; o rato, por sua vez, ao ver o burro morto, entende a mensagem e, para preservar sua vida, faz a divisão do alimento considerada justa para o leão e, assim, obtém sucesso.
Na seqüência temporal, a narrativa apresenta uma sucessão de fatos que estabelece a progressão temática do texto a respeito da exploração do homem pelo homem, ou da lei da sobrevivência em uma sociedade competitiva, tema(s) este(s) que é (são) figurativizado(s) pelos animais partilhando o alimento, em que se destaca a soberania do leão na cadeia alimentar.
A fim de se concretizar a “verdade” do texto, há também a coerência espacial, visto que os animais encontram-se em uma floresta, ambiente que concretiza o cenário em que se desenvolve a história. Como se trata de um texto ficcional, a coerência é estabelecida pela criação desse mundo possível em que os personagens se inserem.
Quanto à linguagem, é coerente ao tipo de texto, que permite o uso do coloquial, a fim de aproximar-se do interlocutor desse tipo de texto. Por isso, o vocabulário é acessível e há construções próximas à oralidade, como “Me façam um favor”, em que o pronome oblíquo inicia a oração, uma forma que a norma padrão rejeita.
Há um “jogo” de pressupostos e subentendidos, que caracterizam o texto como literário e consiste em uma estratégia argumentativa para a defesa do ponto de vista implícito de que “vence o mais forte”.
Dessa forma, podemos considerar este um texto coerente, pois observamos tanto a coerência interna, como a coerência externa dele. A primeira corresponde aos fatores ligados ao conhecimento lingüístico, já apresentados anteriormente, ao passo que a segunda relaciona-se às condições de produção e/ou recepção do texto, tais como o gênero, a situação comunicativa e as relações intertextuais.
Nesse sentido, podemos verificar que, por se tratar de uma crônica, é um texto que trata de tema do cotidiano, em uma linguagem coloquial, mas que constrói opinião pelas estratégias argumentativas. Além disso, de modo subentendido, faz alusão a outros textos existentes, do tipo fábula, que pressupõem a existência de uma “moral”, recurso que se denomina intertextualidade. Pode-se notar que por esse recurso há construção de uma ironia em relação à moral, que é apresentada de uma maneira “subvertida”, isto é, de modo a levar o leitor à reflexão sobre a estupidez humana em suas relações sociais.

Sugestão de atividade
Sugerimos que, para amadurecer sua competência leitora, escolha um outro texto narrativo, até mesmo uma nova fábula, e desenvolva sua análise, contemplando os aspectos abordados até aqui.

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